Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual é a diferença entre falar, recitar e declamar?

Resposta:

Tomando como base as entradas do Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, percebemos que todos estes verbos descrevem determinados atos de fala associados à emissão de voz.

Recitar é usado para descrever a leitura de «um texto para uma audiência em voz alta e clara» ou ato de «dizer em voz alta e pausadamente algo que se sabe de cor». Pode também ser usado de forma algo depreciativa para referir uma narração feita «de modo monótono ou desinteressante [de] uma sequência de factos».

Declamar descreve o ato de «falar com entoação e gestos apropriados ao conteúdo do que se diz, procurando produzir determinado efeito no ouvinte» ou de «falar de forma teatral, em tom enfático ou solene».

Como se pode perceber pelos sentidos apontados atrás, declamar e recitar podem, em muitos contextos, ser usados como sinónimos.

Já o verbo falar tem uma significação mais abrangente, sendo usado para referir, em traços gerais, a «faculdade de exprimir o pensamento por palavras; capacidade de falar» ou, em traços mais específicos, a «maneira de pronunciar, de articular».

Em síntese, e em termos linguísticos, na relação entre os três verbos apontados pelo consulente, falar é um hiperónimo1 de recitar e declamar, que, por seu turno, são frequentemente sinónimos.

Disponha sempre!

 

1. O conceito de hiperónimo aplica-se a uma palavra que tem um sentido mai...

Pergunta:

Na frase «Ela trabalha muito bem quando comparada com os seus colegas», o particípio passado comparada concorda com o sujeito.

Não me parece que tenha função adjetival, mas também não há verbo auxiliar para me dar a certeza de que se trata da voz passiva. Parece-me haver omissão do verbo ser: «Ela trabalha muito bem (se for) comparada com os seus colegas.»

Será assim?

Obrigada.

Resposta:

O segmento «quando comparada com os colegas» pode ser interpretado como uma estrutura oracional passiva reduzida encaixada numa oração adverbial.

As orações passivas participiais podem ter duas naturezas:

(i) Uma estrutura oracional plena, que inclui um verbo flexionado ou um infinitivo não flexionado:

(1) «A tarte foi cozinhada pela Joana.»

(ii) uma estrutura oracional reduzida, na qual o particípio passado não é acompanhado por um auxiliar flexionado:

(2) «A tarte, cozinhada pela Joana, é uma sobremesa deliciosa.»

Estas estruturas oracionais reduzidas surgem principalmente com a função de modificador de nome, incidindo sobre um nome1.

O particípio passado presente nas orações passivas caracteriza-se por concordar em género e número com o sujeito da oração, ao contrário do que acontece com o particípio passado usado em tempos compostos:

(3) «O bolo foi cozinhado pela Joana. / Os bolos foram cozinhados pela Joana. / A tarte foi cozinhada pela Joana. / As tartes foram cozinhadas pela Joana.»

(4) «A Joana tem cozinhado tartes. / As amigas têm cozinhado tartes.»

No caso da frase apresentada pela consulente, o segmento «comparada com os colegas» tem uma estrutura equivalente à apresentada em (2), como se pode observar pela adaptação da frase em (5):

(5) «Ela, (sendo) comparada com os seus colegas, trabalha muito bem.»

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem uma dúvida se possível.

A frase «Após se ter despedido da família, o médico dirigiu-se ao hospital.» estará correta?

Ou seria correto empregar o pronome desta forma:

«Após ter-se despedido da família, o médico dirigiu-se ao hospital.»

Este tema é para mim muito difícil de assimilar, tendo em conta os inúmeros atratores de pronomes existentes cujo listado completo não encontro nas gramáticas.

Agradeço a vossa ajuda!

Resposta:

Ambas as formas são aceitáveis.

A preposição após surge muito frequentemente seguida de sintagma nominal:

(1) «Após o conflito, o país reergueu-se.»

Não obstante, após pode também introduzir uma oração infinitiva. Neste caso, quando a oração inclui um pronome átono, este pode ser colocado após o verbo (posição enclítica) ou antes do verbo (posição proclítica)1, tal como se observa nestes dois exemplos retirados do Corpus de Português, de Mark Davies:

(1) «Numa fase mais recente, e após se ter dedicado à leitura e investigação da obra de escritores portugueses e castelhanos dos séculos XVI e XVII, empreendeu uma renovação do romance pícaro, através de Vida e Obras de Dom Gibão (1987).» (João Palma-Ferreira)

(2) «Aquando da invasão dos aliados abandonou o país fugindo para Espanha mas foi aprisionado, julgado por traição e colaboracionismo e executado após ter tentado envenenar-se.» (Pierre Laval)

Assim sendo, na frase apresentada pela consulente poderemos optar por colocar o pronome antes do verbo ou depois deste:

(3) «Após se ter despedido da família, o médico dirigiu-se ao hospital.»

(4) «Após ter-se despedido da família, o médico dirigiu-se ao hospital.»

Disponha sempre!

 

1. cf. Martins in Raposo et al., Gramática do Português. 2013, p. 2280.

Pergunta:

Encontrei a seguinte oração em um livro técnico:

«No estudo das normas jurídicas, a doutrina costuma distinguir entre regras e princípios.»

Achei absurda a construção. Acredito que, apesar de o verbo possuir a acepção de diferenciar coisas "entre" si, não aceita tal preposição. Ao meu ver, o correto seria «... a doutrina costuma distinguir regras de princípios». Mas ao pesquisar pela Internet, achei alguns outros exemplos deste uso.

Por favor, poderiam me esclarecer se estou equivocada?

Resposta:

O verbo distinguir pode reger a preposição entre.

Este verbo tem um funcionamento sintático muito rico, pois pode funcionar como transitivo direto:

(1) «A direção distinguiu os melhores trabalhadores.»

Funciona também como transitivo direto e indireto, regendo diversas preposições como por exemplo de, entre, com, entre outras1:

(2) «Distinguiu o João dos outros alunos.» (com o valor de “diferençar fazer a distinção”)

(3) «Distinguiu entre o certo e o errado.» (com o valor de “diferençar; fazer a distinção; separar”)

(4) «Distinguiu o João com o prémio de melhor aluno.» (com o sentido de “dar distinção; condecorar”)

Assim, podemos concluir que a construção identificada pelo consulente é correta, sendo, no caso, equivalente, em termos de sentido, à produzido pela estrutura apresentada em (5):

(5) «... a doutrina costuma distinguir regras de princípios»

Disponha sempre!

 

1. Para maior aprofundamento, cf. Luft, Dicionário prático de regência verbal. Ática, 2008, p. 217-218.

Pergunta:

Estive pesquisando sobre licença poética e vi algumas fontes dizendo que esta pode ser utilizada por todos os autores, não importando se são poetas ou não, isto é, o autor de texto de não ficção também pode se valer da licença poética em suas criações.

Essa informação procede?

Fico grata e bom trabalho!

Resposta:

A licença poética é uma liberdade concedida a um criador no contexto de uma produção artística para desrespeitar uma dada norma, um determinado cânone ou um dado modelo1. Embora tenha sido criada no contexto da escrita poética, a licença poética é, no atual contexto, entendida sobretudo como uma liberdade concedida ao artista para que este possa criar sem qualquer tipo de limitações. Na escrita, permite, por exemplo, ao poeta não usar rima ou não respeitar a mancha textual (não tendo de escrever da esquerda para a direita numa linha contínua); autoriza o autor de qualquer tipo de literatura a criar palavras novas ou a desrespeitar as regras de sintaxe para a boa formação de uma frase. A licença poética pode estender-se a outros domínios artísticos que não a literatura para expressar sentidos: é o caso da publicidade.

Assim sendo, podemos encontrar manifestações do fenómeno referido como licença poética em contextos fora da literatura e, portanto, em textos de não ficção. Todavia, esta opção aparece sempre associada a uma significação expressiva, trabalhada intencionalmente pelo autor/criador. Por essa razão, não poderemos confundir esta liberdade com o desrespeito pela norma que ocorre em textos do quotidiano e cuja intenção comunicativa não passa pela manifestação artística. Nestes casos, a escrita deve obedecer a um conjunto de regras pré-determinadas e fixadas nas gramáticas.

Disponha sempre!

 

 1. Cf. conceito de licença poética apresentado por Carlos Ceia em E-dicionário de Termos Literários.