Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
113K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na sequência da elaboração de uma ata, houve uma correção e substitui-se tinham por têm no seguinte enunciado:

«O presidente da reunião referiu que as atribuições tinham / têm de ser muito criteriosas.»

Gostaria de saber qual a forma mais correta.

Obrigada.

Antecipadamente grata.

Resposta:

As formas tinham e têm, no respetivo contexto, podem expressar valores diferentes, estando ambas corretas.

O pretérito imperfeito do indicativo (tinham) descreve uma situação localizada num intervalo de tempo passado, apresentada de forma não concluída. Assim, no caso da frase transcrita em (1), aponta para um estado de coisas que se remete para um intervalo de tempo passado, ou seja, com a frase indica-se que o presidente afirmou que, no passado, as atribuições deveriam ter a característica de serem criteriosas:

(1) «O presidente da reunião referiu que as atribuições tinham de ser muito criteriosas.»

A seleção deste tempo verbal é compatível também com o exercício de transposição do discurso direto para o discurso indireto. Considera-se, nesta linha, que a frase em discurso direto tenha sido a que se apresenta em (2):

(2) « As atribuições têm de ser muito criteriosas.»

Podemos estar perante uma transposição mais livre do discurso direto, na qual se recorre ao presente, como se observa em (3):

(3) «O presidente da reunião referiu que as atribuições têm de ser muito criteriosas.»

Esta opção, embora em sentido estrito não siga as regras de transposição para o discurso indireto, é compatível com o uso do presente do indicativo com valor genérico. Com este valor, o presente contribui para a apresentação de características típicas de uma dada realidade. Ora, no caso da frase em apreço, o uso do presente poderá veicular a ideia de que a aplicação criteriosa das atribuições deverá acontecer em qualquer intervalo temporal (passado, presente ou futuro).

Disponha sempre!

Pergunta:

Gostaria de saber a predicação verbal da seguinte frase: «A multidão caminhava pela estrada poeirenta.»

Visto que caminhar é intransitivo, o predicado não seria verbal, apenas? Porque li que seria verbo-nominal em função de poeirenta ser predicativo e eu não consigo entender por que poeirenta teria essa função.

Agradeço antecipadamente.

Resposta:

De acordo com autores como Cunha e Cintra1, o predicado verbo-nominal pode ocorrer em construções como (1), na qual existe um verbo significativo (sair) e um predicado que se refere ao sujeito (preocupada):

(1) «A Joana saiu de casa preocupada.»

Este predicado pode incidir sobre o sujeito, como em (1), ou sobre o complemento direto, como em (2), onde o adjetivo preocupado incide sobre o complemento direto («o rapaz»):

(2) «Ela achou o rapaz triste.»

Como se observa nas frases anteriores, um adjetivo pode ser predicado nominal em diferentes contextos.

Não obstante, também encontramos o adjetivo em funcionamento incidindo diretamente sobre o nome, como adjunto (modificador), como acontece em (3):

(3) «O rapaz triste chegou a casa.»

Neste caso, o adjetivo não é um elemento essencial à frase e pode ser eliminado, o que não acontece nas frases (1) e (2). Por essa razão, em (3) não temos um predicado nominal.

O mesmo acontece na frase apresentada pelo consulente, transcrita em (4):

(4) «A multidão caminhava pela estrada poeirenta.»

Neste caso, o adjetivo poeirenta incide sobre o nome estrada e em conjunto formam um grupo nominal uno.

Disponha sempre!

 

1. Cunha e Cintra, Nova gramática do Português Contemporâneo. Lexicon, p. 151 e ss.

Pergunta:

Tenho um bom domínio do português europeu mas deparei-me com uma construção numa frase que à primeira vista me pôs confuso: «não sei que te diga».

Pensava que se dizia «não sei que te dizer».

Qual das duas frases está correta? E que explicação se pode dar a isto?

Resposta:

As frases apresentadas são ambas possíveis. Poderão, todavia, ser sentidas por alguns falantes como ligeiramente diferentes.

Antes de mais, recorde-se que, quando na oração subordinante está presente um verbo relacionado com o conhecimento (saber, constatar, reconhecer, provar, entre outros), este seleciona o modo indicativo quando a oração subordinante é afirmativa1. Assim, dir-se-á:

(1) «Sei (o) que te digo

Se a oração subordinante for negativa, pode combinar-se com indicativo ou conjuntivo na subordinada1:

(2) «Não sei (o) que te digo / diga

Neste caso, a seleção do modo indicativo indica que o locutor se compromete com a verdade do conteúdo da oração subordinada. Já o recurso ao modo conjuntivo está relacionado com a indicação de que a situação descrita não envolve a «assunção da veracidade da proposição»2, ou seja, o locutor não se compromete com a verdade do que afirma na oração subordinada completiva.

É também possível o recurso ao infinitivo na oração subordinada, como em (3):

(3) «Não sei (o) que te dizer

A diferença entre as frases (2) e (3) é muito ténue e não será sentida por todos os falantes. A frase (3) poderá descrever sobretudo um procedimento («saber fazer alguma coisa») ao passo que a frase (2) descreve a ocorrência de um facto (que terá lugar ou não)3.

Disponha sempre!

 

1. Pilar Barbosa in Raposo et al., Gramática do Português

Pergunta:

Para eu dizer que há uma oração que possui um sentido correlativo, eu preciso dos conectivos correlativos?

Vi, em um lugar, a pessoa alegando que a oração destacada («José andou E CAMINHOU)» acumula uma ideia de correlação.

Ao meu ver, há um erro de definição.

Obrigado.

Resposta:

A estrutura correlativa constrói-se pelo uso de conectores correlatos, que se caracterizam por serem locuções que deixam em cada oração um elemento que sinaliza uma relação de interdependência, como acontece em (1), frase onde a segunda oração estabelece, por meio da locução conjuncional correlativa, uma relação de dependência semântica com a primeira, indicando que o sentido de uma está vinculado ao de outra:

(1) «Ele não só se atrasou como também não trouxe o computador.»

Poderemos considerar locuções correlativas pares como «ou ... ou». «ora ... ora», «quer ... quer», «não ... nem», que veiculam um valor de disjunção, ou pares como «não só ... mas também», «não só ... como também», «não apenas ... mas ainda», «nem … nem», que exprimem um valor de adição, entre outros. 

Vários autores concluem que, do ponto de vista sintático, a correlação é um tipo de conexão entre orações estabelecido por estes elementos conectivos, que formam pares correlativos, situando-se cada elemento numa das orações1. Por essa razão, a correlação sintática entre oração não é estabelecida, à partida, apenas por uma conjunção que esteja presente em apenas uma das orações

Poderemos ainda falar de correlação lexical entre pares de palavras, como por exemplo «maridomulher», «paifilho» ou «irvir».

Na frase apresentada, a correlação não se estabelece a nível oracional. Não obstante, pode considerar-se que andar e caminhar são termos correlatos, na medida em que a sua significação está relacionada.

Disponha sempre!  

 

Pergunta:

«Continuo a fazer a viagem como sempre fiz.»

Qual é o valor aspetual?

Obrigado.

Resposta:

Sem outro contexto, a frase apresentada configura um aspeto lexical de evento, uma vez que descreve situações que envolvem mudança.

Do ponto de vista gramatical, a oração «como sempre fiz» combina o valor perfetivo (de situação concluída) com o valor habitual (de situação que se repetiu sem delimitação temporal, compatível com o advérbio habitualmente).

Já a oração «continuo a fazer a viagem» combina um valor aspetual imperfetivo (de situação não concluída) com o valor aspetual habitual1.

Disponha sempre!