Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Francisco Fernandes, no seu Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos, dá para desconfiado a preposição de e para.

Não seria apenas a preposição de selecionada por desconfiado?

Muito obrigado!

Resposta:

Celso Luft assinala como regências de desconfiando as preposições com e de1, apresentando exemplos como os abaixo transcritos:

(1) «Mulher desconfiada com o marido.»

(2) «Estou desconfiadíssima de que a tal arte de não fazer nada não existe» (Cecília Meireles, O que se diz e o que se entende – Crônicas. Nova Fronteira, 1980.)

Uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies mostra que, a nível literário, desconfiado tem registos de uso também com as preposições de e com, como se observa por exemplo em:

(3) «Não era inglês, mas lembrou-lhe a outra, que o marido levou para a roça, desconfiado de um inglês, e sentiu crescer-lhe o ódio contra a raça masculina - com exceção, talvez, dos rapazes a cavalo.» (Machado de Assis, Capítulo dos Chapéus.)

(4) «Já não estou desconfiado com a Berlenga.» (Rúben Andresen, Páginas. 1988)

No mesmo corpus, identificamos frases em que desconfiado ocorre com a preposição para, como se exemplifica a seguir:

(5) «Bio olhou desconfiado para um capão, a uns trinta metros da casa.» (Eric Veríssimo,

Moçárabe
Significado e etimologia

O significado e a etimologia da palavra moçárabe dão tema ao apontamento da professora Carla Marques divulgado no programa Páginas de Português, na Antena 2 (dia 17 de dezembro de 2023).

Pergunta:

Na frase «[…] uns feixes de mato a ziguezaguearem e a andarem e a pararem […]», podemos considerar a existência de uma enumeração para além da personificação nela existente?

Resposta:

No excerto apresentado, podemos identificar a presença da enumeração como recurso expressivo.

A enumeração é a «[a] dição ou inventário de coisas relacionadas entre si, cuja ligação se faz quer por polissíndeto quer por assíndeto»1. Neste caso, a relação que se estabelece entre os elementos enumerados está relacionada com os movimentos executados pelos feixes de mato.

A enumeração é um recurso expressivo com efeitos retóricos quando, como afirma Garavelli, «a intenção comunicativa, o contexto verbal, as situações de uso, etc., lhe atribuem eficácia argumentativa, descritiva»2. Ora, neste caso, embora não tenhamos acesso ao texto na sua íntegra, poderemos aventar a hipótese interpretativa de que a enumeração contribui para a descrição de uma situação, recorrendo a um efeito estilístico de adição de ideias. Neste caso, a adição surge bem vincada porque é processada por meio do polissíndeto, que associa cada uma das formas verbais. 

Disponha sempre!

 

1. E-dicionário de termos literários

2. Bice Garavelli, Manual de Retórica. Cátedra, 1991, p. 248.

Pergunta:

«Candidatos por eleger: 3» e «Candidatos para eleger: 3» têm o mesmo significado?

Ou seja, «Candidatos que serão/hão de ser (ou: devem/podem ser) eleitos: 3»?

Parece-me que as preposições por e para dentro de uma estrutura de SUBSTANTIVO + (POR/PARA) + INFINITIVO assume uma forma passiva do verbo, podendo ser antecedida ou não de um verbo modal.

Como não tenho certeza disso, trago tal raciocínio a vocês, pedindo-lhes o seu esclarecimento. Há um trecho duma música do Pe. Zezinho com semelhante estrutura:

1. «… Tarefa escolar para cumprir…» = … Tarefa escolar que deve ser cumprida…

Até mesmo Napoleão Mendes (que para mim não foi muito claro) traz alguns exemplos no seu dicionário:

2. «Casos para/por esclarecer» = Casos que serão/hão de ser esclarecidos

3. «Livros para/por consultar» = Livros que podem ser consultados.

Antecipadamente muito obrigado.

Resposta:

Neste caso, a opção por uma das preposições implica diferenças no sentido da construção.

Assim, na estrutura transcrita em (1), a preposição para expressa um valor de finalidade a atingir:

(1) «Candidatos para eleger»

A expressão em (1) será equivalente a

(2) «Candidatos que estão disponíveis para ser eleitos»

(3) «Candidatos que poderão vir a ser eleitos»

Já na estrutura transcrita em (2), a preposição por expressa o valor de «que ainda necessita ser feito»:

(4) «Candidatos por eleger»

Em (4) referem-se os candidatos que ainda não estão eleitos e que, eventualmente, alguém ainda irá eleger.

Os mesmos valores acima descritos estão associados às expressões aqui transcritas em (5) e (6):

(5) «Casos para esclarecer» («Casos que serão/hão de ser esclarecidos»)

(6) «Casos por esclarecer» («Casos que falta esclarecer»)

(7) «Livros para consultar» («Livros que podem ou devem ser consultados»)

(8) «Livros por consultar» («Livros que ainda não foram consultados/ que falta consultar»)

Disponha sempre!

Pergunta:

Como se deve dizer: «Roma e Pavia não se fez num dia» ou «Roma e Pavia não se fizeram num dia»?

Resposta:

A opção correta será a que se assinala em (1):

(1) «Roma e Pavia não se fizeram num dia.»

Em caso de sujeito composto, a concordância faz-se habitualmente na 3.ª pessoa do plural. O sujeito é, neste caso, composto porque é formado por dois sintagmas nominais («Roma», «Pavia») que se encontram coordenados pela conjunção copulativa e.

Note-se, todavia, que nos casos em que o sujeito é composto, mas engloba dois sintagmas que apontam para um mesmo referente, o verbo surge no singular, como em (2):

(2) «O meu vizinho e meu amigo mora no segundo andar.» (vizinho e amigo referem a mesma pessoa)

Note-se, no entanto, que esta possibilidade não se aplica à frase (1) porque os sintagmas que integram o sujeito referem duas realidades distintas: as cidades de Roma e de Pavia.1

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, Cf. Cadernos de Língua Portuguesa. Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, p. 22-25.

 

N. E. (16/12/2023) – Em (1), mantendo a ordem de constituintes apresentada, não é possível o se impessoal (sujeito pronominal indeterminado) e a concordância do verbo no singular: *«Roma e Pavia não se fez num dia». Se houver pausa (p. ex. marcada por uma vírgula), entre o sintagma nominal (neste caso, «Roma e Pavia») e a restante frase, a construçã...