Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
129K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual a diferença da ordem indireta e ordem inversa na estrutura das frases? São a mesma coisa?

Notei que são termos utilizados para se referir a mesma coisa em vários vídeos didáticos e artigos, no entanto em alguns sites parece haver sim uma diferença entre inversa e indireta, se há qual seria?

Estou fazendo um simulado e a seguinte pergunta surgiu:

Em «Grisalhos eram os seus cabelos», a oração está em ordem (A) direta. (B) indireta. (C) inversa. (D) interrompida.

Por isso a dúvida.

Obrigado.

Resposta:

Na perspetiva gramatical, a ordem direta corresponde à seguinte ordem dos constituintes da frase: «sujeito + verbo + objeto direto + objeto indireto» ou «sujeito + verbo + predicativo». Esta é a ordem por defeito dos elementos da frase em português.

A ordem inversa é aquela que assenta numa ordem diferente dos constituintes, mantendo a frase a sua gramaticalidade, como por exemplo «Complemento direto + verbo + sujeito». Habitualmente, as gramáticas consideram duas possibilidades: a ordem direta ou a ordem inversa (também designada indireta).

A ordem interrompida tem lugar quando se coloca um constituinte a intercalar os constituintes nucleares, interrompendo a ordem normal da frase, como em «O Luís, na segunda-feira, falou comigo.»

Assim sendo, a frase apresentada está na ordem inversa (ou também designada indireta).

Disponha sempre!

Aforismo
A expressão de preceitos

O que são aforismos? Em que se distinguem dos provérbios, adágios ou máximas? A professora Carla Marques aborda estas e outra questões no seu apontamento dedicado aos aforismos. 

Pergunta:

Nesta frase, excerto de um texto de Saramago, «Naturalmente, a sua vida era feita de dias, e dos dias sabemos nós que são iguais», a oração «que são iguais» é substantiva completiva, mas, tratando-se de Saramago, eu dei voltas à oração e parece-me que poderia ser adjetiva relativa restritiva, sendo «que» um pronome relativo cujo antecedente é «dias»: «Nós sabemos dos dias que são iguais.» («que são iguais» pode ser substituído pelo adjetivo iguais – «Nós sabemos dos dias iguais»).

Não sei se faz sentido a minha dúvida. Isto deixou-me baralhada porque eu vejo «dias» como o antecedente.

Obrigada.

Resposta:

No caso em apreço, a oração «que são iguais» é uma subordinada substantiva completiva.

O verbo saber pode ser usado como transitivo direto1:

(1) «Ela sabe duas línguas.»

Também pode funcionar como transitivo indireto1:

(2) «Ele sabe dos resultados do exame.»

No caso da frase de José Saramago2, o autor usa o verbo saber como transitivo direto e indireto, como se pode observar pela reorganização dos elementos da oração em questão:

(3) «Nós sabemos dos dias que são iguais.»

Trata-se de um uso não habitual do verbo saber. Não obstante, é possível verificar que em (3), a oração «que são iguais» desempenha a função de complemento direto, como se comprova pela possibilidade de pronominalização:

(4) «Nós sabemos isso dos dias.»

A oração «que são iguais» não é, por esta razão, uma subordinada adjetiva relativa que assume como antecedente o grupo nominal «os dias».

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «Os Judeus eram perseguidos por professarem uma religião diferente», «por professarem uma religião diferente» desempenha a função sintática de complemento agente da passiva ou modificador do grupo verbal?

Resposta:

O constituinte «por professarem uma religião diferente» desempenha, na frase em apreço, a função sintática de modificador do grupo verbal.

Se a frase (1) correspondesse a uma frase passiva, poderíamos colocá-la na forma ativa, o que a frase (2) demonstra não ser possível:

(1) «Os Judeus eram perseguidos por professaram uma religião diferente.»

(2) «*O professaram uma religião diferente perseguia os Judeus.»

Assim concluímos que o constituinte «por professaram uma religião diferente» não desempenha a função de complemento agente da passiva.

A preposição por pode introduzir constituintes com a função de complemento agente da passiva, mas também pode introduzir constituintes com valor de causa em orações que não são passivas:

(3) «Falei com ele por saber que ele estava triste.»

É esta a situação presente na frase em análise. Por esta razão, o constituinte «por professaram uma religião diferente» desempenha a função sintática de modificador do grupo verbal.

Disponha sempre!

 

*assinala a construção agramatical.

Pergunta:

«João, apresento-te a Maria. Acho que vão gostar muito de se conhecer(em).»

O que está entre parêntesis é necessário, opcional ou um erro?

Resposta:

Ambas as frases são possíveis. No entanto, a frase com infinitivo flexionado será menos aceitável para alguns falantes.

A frase transcrita em (1) inclui um verbo que seleciona uma oração completiva ou um constituinte:

(1) «Acho que vão gostar muito de se conhecer.».

A oração subordinante («acho que») constrói-se com uma oração completiva («vão gostar muito de se conhecer») que é introduzida por um complexo verbal, formado pelo auxiliar ir e pelo verbo nuclear gostar, que por seu turno seleciona a completiva «se conhecer». O verbo gostar rege a preposição de, pelo que os seus argumentos serão sempre sintagmas preposicionados:

(2) «Ele gosta de música.»

(3) «Ele gosta de ir a concertos.»

Quando o verbo gostar (e outros verbos que selecionam oração completiva introduzida por preposição) se constrói com uma oração infinitiva, prefere-se normalmente o infinitivo simples, como acontece em (1) e (3). Neste caso, o verbo que se encontra no infinitivo assume como sujeito o da oração a que se subordina: no caso da frase (1) trata-se de um sujeito de 2.ª pessoa do plural, realizado como «vocês», que se constrói com 3.ª pessoa do plural.

Tal como explicam Barbosa e Raposo, «com a grande maioria destes verbos [construídos com preposição e com oração infinitiva], e mantendo a leitura de correferencialidade entre os dois sujeitos, o infinitivo flexionado também é possível, embora seja sentido como menos natural por alguns falantes»1.

Disponha sempre!

 

1. Barbosa e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1936.