Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

No seguinte parágrafo:

«No início, alguns professores apresentaram um pouco de resistência com o recurso digital, por ser algo novo, tiveram receio de que pudesse dificultar o trabalho, entretanto, em pouco tempo os benefícios promovidos pelo recurso se sobressaíram, o que levou os professores a abraçar o projeto.»

O verbo abraçar está corretamente conjugado? Não deveria ser abraçarem?

Gostaria de entender a regra gramatical nesse caso, pois é algo que sempre me deixa em dúvida!

Obrigado!

Resposta:

As duas opções são aceitáveis: abraçar e abraçarem.

A regra geral para o uso do infinitivo pessoal (ou seja, infinitivo flexionado) é a seguinte:

emprega-se o infinitivo pessoal ou flexionado quando este tem um sujeito próprio, diferente do verbo da oração da qual depende ou na qual se integra, como acontece em (1), onde se destacam os sujeitos de cada verbo (no caso da subordinada, «os alunos» funciona como sujeito semântico):

(1) «Eu convidei os alunos a concluírem o exercício.»

Não obstante, no caso das orações infinitivas, há casos particulares a ter em consideração. Um deles é o caso de verbos que selecionam um sujeito, uma oração infinitiva completiva regido pela preposição a e um complemento direto, como acontece com o verbo convidar em (2):

(2) «Ele convidou os amigos a vir a sua casa.»

Ora, no caso destes verbos, é aceitável tanto não flexionar o verbo no infinitivo, como em (2), como optar pela sua flexão, como em (3):

(3) «Ele convidou os amigos a virem a sua casa.»

Neste caso, o verbo vir tem um sujeito nulo (não expresso), mas este assume como referente o sintagma «os amigos», que é complemento direto de convidar1.

O mesmo sucede no segmento «o que levou os professores a abraçar(em) o projeto», no qual é possível optar por uma oração completiva infinitiva não finita (que não flexiona) ou infinitiva finita (que flexiona, concordando esta última com o sintagma «os professores»).

Disponha sempre!

 

Pergunta:

A oração subordinada presente na frase «O poema desenvolve a ideia de que o mito pode explicar a realidade» é uma oração subordinada substantiva completiva ou adjetiva relativa restritiva?

Grata pela colaboração.

Resposta:

A oração «de que o mito pode explicar a realidade» é uma oração subordinada substantiva completiva de nome. Esta desempenha a função sintática de complemento do nome ideia.

As orações subordinadas completivas podem ser argumentos de várias classes de palavras (sublinha-se a palavra que pede a completiva e destaca-se a negrito a oração subordinada completiva):

(i) de um verbo:

    (1) «Ele referiu que o mito explica a realidade

(ii) de um nome/substantivo:

    (2) «Encontro a prova de que o mito explica a realidade

(iii) de um adjetivo:

     (3) «É muito possível que o mito explique a realidade

O caso apresentado pela consulente corresponde ao caso (ii), sendo a subordinada completiva uma oração finita. Nalguns casos é possível realizar estas orações como subordinada completiva não finitas, como em (4):

(4) «É importante a ideia de o mito explicar a realidade

Refira-se ainda que a oração apresentada pela consulente não é uma relativa porque a palavra que não substitui o nome ideia na oração que introduz, o que indica que não se trata de um pronome relativo, mas de uma conjunção. Veja-se a agramaticalidade que resulta da tentativa de inserir o nome ideia na oração subordinada:

Pergunta:

Na frase «Não é porque o carro à nossa frente passou no amarelo que devemos arriscar transitar num vermelho», podemos considerar a oração introduzida por que como sendo uma oração substantiva completiva?

Resposta:

O constituinte «que devemos arriscar transitar num vermelho» não corresponde a uma oração subordinada completiva.

No caso em apreço, estamos perante uma estrutura clivada (ou expletiva). Estas estruturas permitem focalizar um dado constituinte da frase, que é, por este processo, separado do resto da frase1 com a intenção de lhe dar relevo na frase.

No caso em apreço, a estrutura utilizada é a seguinte: «SER + oração + que»

A frase apresentada equivale à seguinte frase onde não se usa a construção de foco ou de clivagem:

(1) «Não devemos arriscar transitar num vermelho porque o carro à nossa frente passou no amarelo».

O cotejo das duas frase (clivada e não clivada) mostra que o locutor, na frase clivada, pretendeu coloca o enfoque na oração «porque o carro à nossa frente passou no amarelo». Note-se que esta oração continua a desempenhar, na construção clivada, a mesma função que desempenha na construção não clivada, ou seja, trata-se de um modificador.

Por fim, refira-se que a partícula que não é relativa porque não tem um antecedente e também não é completiva porque não introduz um argumento pedido por alguma palavra. Trata-se de um elemento da partícula expletiva «é que», que neste caso se encontra descontinuada.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Martins e Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2640 e ss.

Pergunta:

«Seu programa nacional-desenvolvimentista guardava uma série de dificuldades e contradições ao mesmo tempo em que avança a modernização nacional para passos realmente importantes, [bem/assim como] sua fórmula populista de condução política via o risco da ingovernabilidade.»

Seria correto o uso de «bem/assim» como nesse contexto, possuindo o significado de «além disso», «ademais», etc.?

Resposta:

É possível utilizar a locução «bem /assim como» neste contexto, mas, a bem da clareza das ideias, a frase deveria ser reorganizada.

A locução «bem como» estabelece uma ideia de adição a que se associa um ligeiro valor comparativo. Ora, se bem interpreto a frase apresentada, nela pretende-se coordenar a oração «sua fórmula populista de condução política via o risco da ingovernabilidade» com a oração «Seu programa nacional-desenvolvimentista guardava uma série de dificuldades e contradições». No entanto, estas duas orações são intercaladas por uma oração com valor de simultaneidade temporal, «ao mesmo tempo em que avança a modernização nacional para passos realmente importantes». Esta oração intercalar é longa, o que prejudica a clareza da ligação entre as orações inicial e final, dificultando a interpretação da frase.

Assim, as ideias ficariam bem mais claras se se optasse por esta organização frásica:

(1) «Ao mesmo tempo em que avança a modernização nacional para passos realmente importantes, seu programa nacional-desenvolvimentista guardava uma série de dificuldades e contradições, bem/assim como sua fórmula populista de condução política via o risco da ingovernabilidade.»

Refira-se, por fim, que a vírgula antes de «bem como» é estilística, pelo que é opcional. Neste caso, ajuda à delimitação das duas situações descritas nas orações que se coordenam.

Disponha sempre!

Pergunta:

1. Na frase «quantos dias DEMORAM para fazer efeito o remédio?», o verbo demorar na frase a seguir deve ficar no plural, concordando com «dias», ou no singular, por indicar passagem de tempo?

2. No caso do verbo levar, em sentido de transcurso de tempo, deve-se seguir a regra dos verbos haver e ter e colocá-los no singular?

«Levou 10 dias» ou «levaram 10 dias»?

Obrigado!

Resposta:

No caso da frase em análise, o sujeito de demorar é o substantivo remédio, pelo que o verbo deve ficar na 3.ª pessoa do singular. O sujeito é colocado no final da frase por se tratar de uma frase interrogativa. A frase teria a forma que se apresenta em (1) se surgisse na ordem SVO (sujeito-verbo-objeto):

(1) «O remédio demorou quantos dias para fazer efeito?»

O mesmo se aplica à frase com o verbo levar:

(2) «O remédio levou quantos dias para fazer efeito?»

Neste uso, o verbo demorar tem o sentido de «tardar a realizar-se; tornar-se real num período de tempo prolongado» (Dicionário Houaiss) e o verbo levar de «fazer uso de (tempo); consumir, demorar» (Idem).

No caso de construções como a que se apresenta em (3), o verbo pode ter um sujeito explícito ou subentendido e concordará com ele:

(3) «(O João) levou dez dias a chegar.» / «(O João e a Rita) levaram dez dias a chegar.»

Disponha sempre!