Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Perante as seguintes frases, não entendo porque a primeira é identificada como verdadeira e a segunda falsa.

1.ª «Estás constipado, pois não paras de espirrar!»

2.ª «Ele espirrava muito, pois estava constipado.»

Agradecendo a atenção, aguardo resposta.

Resposta:

Não temos indicação do quadro no qual se deve processar a interpretação das frases apresentadas, pelo que nos cingiremos a uma análise no quadro da articulação entre orações.

Neste plano, na frase (1), a oração «pois não paras de espirrar» é uma oração coordenada explicativa que justifica a afirmação «Estás constipado»:

(1) «Estás constipado, pois não paras de espirrar.»

Assim sendo, a oração coordenada explicativa não é uma causa da primeira oração, ou seja, espirrar não provoca uma constipação. Esta oração explicativa vem justificar afirmação «Estás constipado».

Em (2), a oração «pois estava constipado» é uma oração subordinada adverbial causal:

(2) «Ele espirrava muito, pois estava constipado.»

Neste caso, a oração subordinada é apresentada como uma causa para o facto de espirrar muito. Ou seja, no mundo tal como o conhecemos a constipação pode ser a causa dos espirros.

No âmbito desta interpretação, poderemos afirmar que a inferência / a conclusão presente na frase (1), «Estás constipado», pode ser falsa, ao passo que na frase (2) ambas as orações são dadas como verdadeiras.

Disponha sempre!

Pergunta:

Tenho uma grande dúvida relativa ao complemento determinativo.

A minha professora deu-nos um powerpoint no qual dá dois exemplos que eu não compreendi.

Um deles é "O bolo de laranja estava muito bom", sendo dito que "de laranja" é complemento determinativo. Não seria aposto, já que está a completar o sentido do nome?

O outro é "Ninguém teve notícias dele" e é dito que "dele" é complemento determinativo. Não seria complemento direto?

Muito obrigada!

Resposta:

«Complemento determinativo» é uma designação que era usada na Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967 para referir um tipo específico de complemento, cuja natureza se descreve da seguinte forma:

«O complemento determinativo é constituído por um nome ou equivalente, o qual se liga a outro nome ou a um adjetivo por meio da preposição de.

Este complemento pode estabelecer relações diversas com o nome determinado, particularizando a sua ideia.

Origem: um barulho de passos; o vinho do Porto

Qualidade: um homem de ação; um restaurante de renome

Fim: uma agulha de tricô; uma mesa de jogo

Posse: a caneta do pai

Tempo: a roupa de verão

Matéria: um anel de ouro

Parentesco: o tio do João»1

De acordo com esta perspetiva, os constituintes destacados a negrito em «bolo de laranja» e «notícias dele» desempenham a função sintática de complemento determinativo, indicando qualidade e posse, respetivamente.

No entanto, refira-se que a função sintática de complemento determinativo não é contemplada em documentos mais recentes, como o Dicionário Terminológico, que serve de referência para os termos gramaticais a usar no ensino não universitário. Gramáticas científicas mais recentes, como a Gramática da Língua Portuguesa, de M...

Pergunta:

O uso de "diga" ou "diga-me"/"diga se faz favor" etc no contexto de serviços é considerado correto ou errado? Equivale a boa ou má educação?

Quando estamos numa fila e chega a nossa vez, é costume ouvir da parte do prestador de serviços ''diga"/"diga se faz favor"/etc

Ouvi hoje que há quem considere este "diga" má educação...

Questiono-me o que deverão dizer em vez de "diga" e o que não seria má educação?

Existe alguma regra de etiqueta aqui ou isto é uma diferença regional? Pessoalmente, na maior parte das vezes sempre ouvi dizer "diga" (ou uma variante).

Muito obrigada pela atenção.

Resposta:

A opção pela expressão «Diga» ou suas variantes não será considerada falta de educação para com o interlocutor em contexto de atendimento ao público, mas, nalguns contextos, poderá ser sentida como desajustada.

Há que ter em consideração o grau de formalidade que o serviço exige. Com efeito, num serviço de contexto formal, os manuais de etiqueta1 indicam aos seus colaboradores que devem evitar expressões como «Diga!», «Sim…?» Neste âmbito, será preferível recorrer a expressões como «Em que posso ajudá-lo?» ou «Queira dizer, por favor.»

Não obstante, em contextos de atendimento ao público menos formais, a opção por «Diga, por favor» poderá ser aceitável, uma vez que marca a disponibilidade para uma interação verbal.

Disponha sempre!

 

Cf. Instruções do Manual de Boas Práticas de Atendimento da Câmara Municipal de Ílhavo.

<i>Haver</i> impessoal
Uma questão de concordância

A identificação da frase correta entre as frases «Promessas terrenas, não as havia» e «Promessas terrenas, não as haviam» leva a professora Carla Marques a analisar os usos impessoais do verbo haver

 Apontamento incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 15 de outubro de 2023.

Pergunta:

"Cabe destacar que os juízes da mesma nacionalidade de qualquer dos contendores, embora conservem o direito de atuar, podem declarar-se ou ser declarados impedidos de julgar uma causa. "mesma nacionalidade DE" ou "mesma nacionalidade QUE"? Muito obrigado!

Resposta:

No caso em apreço, será preferencial a opção pela preposição de, mas note-se que nem todos os falantes poderão ter a mesma sensibilidade perante este facto linguístico para o qual não encontrámos descrição nas fontes consultadas.

A construção «mesmo + substantivo» pode ser seguida de duas estruturas:

(i) um sintagma preposicional:

      (1) «Escolhi os textos do mesmo nível dos premiados anteriormente

(ii) uma oração subordinada relativa:

      (2) «Escolhi textos com o mesmo nível que tinham os premiados anteriormente

Não obstante, em construções com o valor de comparação quantitativa, é possível fazer seguir a estrutura «mesmo + substantivo» de uma oração elíptica, na qual se omite o verbo, como em (3), ou na qual se omite o segmento que explicita o segundo termo de comparação ou parte dele (4):

(3) «Escolhi os textos com o mesmo nível que os (que foram) premiados anteriormente.»

(4) «Escolhi os textos com mesmo nível que (o d[os]) os premiados anteriormente.»

Nesta linha de pensamento, na frase apresentada, parece ser preferencial a opção pela estrutura seguida de sintagma preposicional, como em (5):

(5) «Cabe destacar que os juízes da mesma nacionalidade de qualquer dos contendores […]»

Todavia, é possível que a frase seja entendida como elíptica, o que numa comparação é algo frequente:

(6) «Cabe destacar que os juízes da mesma nacionalidade que (a de) qualquer dos contendores […]»

(6) «Cabe destacar que os juízes da mesma ...