Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
113K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A expressão «lides domésticas» pode ser utilizada enquanto sinónimo de «lida doméstica» ou trata-se de um erro de impropriedade lexical?

Resposta:

As duas expressões podem ser usadas como sinónimas.

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, a palavra lide pode ser usada com as seguintes significações: «luta, combate; questão entre duas ou mais pessoas, submetida à apreciação e decisão de um juiz, de um tribunal; atividade que se destaca pela defesa empenhada de determinados princípios políticos ou de certos interesses partidários; tauromaquia, toureio; qualquer trabalho que exija esforço, que cause fadiga, canseira». É no âmbito desta última significação que a expressão «lide doméstica» se enquadra.

A palavra lida, por seu turno, pode ser usada no sentido de «qualquer trabalho que exija esforço, que cause fadiga; ato ou efeito de lidar». Por esta razão, é também possível usá-la na expressão «lida doméstica».

As palavras lida e lide têm origens diferentes: lide vem do latim lis, litis, ao passo que lida é uma palavra formada por derivação não afixal com base no verbo lidar1. Não obstante, assumiram sentidos semelhantes, que, em sincronia, podem ser usados de forma indistinta.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

Pergunta:

Nas frases «Desmorona-se o sistema» e «Para lá de nós, estende-se o mistério da vida», qual a função sintática dos elementos «o sistema» e «o mistério da vida»?

A dúvida coloca-se por se tratarem de verbos acompanhados do pronome se que, em muitos casos, configuram sujeitos nulos indeterminados – «alguém desmorona o sistema» (como em «vende-se casas» = alguém as vende).

Na segunda frase, a expressão «o mistério da vida», quando colocada na passiva, passa a sujeito («O mistério da vida estende-se»), o que me coloca em dúvida em relação à sua função na ativa.

Resposta:

As frases apresentadas pela consulente terão de ser analisadas separadamente porque correspondem a diferentes realidades sintáticas com a presença de se.

A frase transcrita em (1) permite várias interpretações:

(1) «Desmorona-se o sistema.»

(i) Se é um pronome reflexo, o que significa que retoma o sujeito («o sistema»), indicando que o agente e o paciente da situação descrita pelos verbos são os mesmos. No âmbito desta interpretação, o pronome se é compatível com a expressão «a si próprio» e desempenha a função de complemento direto:

       (2) «O sistema desmorona-se a si próprio.»

(ii) Se tem função apassivadora, sendo a frase uma passiva reflexa equivalente a:

       (3) «O sistema é desmoronado (por alguém).»

      Nesta interpretação, o constituinte «o sistema» desempenha a função de sujeito.

(iii) Se integra uma oração de se impessoal, desempenhando a função de sujeito, ao passo que «o sistema» tem a função de complemento direto. Neste caso, a frase é equivalente a:

     (4) «Alguém desmorona o sistema.»

Caso o constituinte «o sistema» se encontrasse no plural, seria mais fácil optar pela interpretação (ii) ou (iii), devido à concordância verbal, como se observa nas frases adaptadas:

(5) «Desmoronaram-se os sistemas.» («os sistemas» é sujeito)

(6) «Desmorona-se os sistemas.» («os sistemas» ...

Pergunta:

Enquanto docente, deparo-me frequentemente com a utilização do verbo falar em numerosos contextos que, na minha opinião, não são, na sua grande maioria, os mais corretos.

Assim, surgem frases, como:

a) «Ele falou que ia ao cinema.» (Influência do português do Brasil)

b) «O texto fala da história dos dinossauros.»

c) «Venho falar sobre a minha opinião sobre a televisão.»

Estes são alguns exemplos daquilo que ouço diariamente, em sala de aula, mas também do que leio nos textos escritos pelos alunos. Apesar de tentar explicar aos alunos que utilizamos este verbo, sobretudo, quando nos referimos a conversas («Ele falou com ela», «Ele falou dela», «Ele falou dos seus problemas»...), vejo que nem sempre percebem a diferença e tenho alguma dificuldade em explicá-la de outro modo.

Assim para as frases acima, sugiro que escrevam/digam:

a) «Ele disse/afirmou que ia ao cinema.»

b) «O texto conta/narra a história dos dinossauros.»

c) «Vou apresentar a minha opinião sobre a televisão.»

Gostaria, então, de saber se há alguma resposta mais adequada que eu possa transmitir aos meus alunos para a resolução desta situação, pois as suas dificuldades de expressão, quer oral, quer escrita, têm vindo a agravar-se e, contrariamente ao que muitos afirmam, não por culpa dos confinamentos a que estiveram sujeitos.

Agradeço, desde já, a sua disponibilidade em responder.

Resposta:

Uma dificuldade que os alunos manifestam com alguma frequência está relacionada com a incapacidade/dificuldade de ajustar os seus textos (orais ou escritos) a um registo de língua formal ou mais cuidado. Por essa razão, a escola aborda conteúdos como as variantes diastráticas (grupos sociais) ou as variantes diafásicas (grau de formalidade) e os processos de adequação linguística ao contexto de comunicação.

Os usos do verbo falar apresentados pela consulente são todos legítimos, porque, de facto, este verbo tem uma amplitude grande de significações, como se pode observar por uma síntese do seu verbete retirada do Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa:

«1. articular, um ser humano, sons com a voz, formando palavras. 2. imitar, um animal ou um mecanismo, a linguagem humana, produzindo-a. 3. exprimir-se em determinada língua. 4. comunicar, usando um sistema não linguístico. 5. revelar um segredo; tornar pública, conhecida, determinada informação. 6. dirigir a palavra ou comunicar verbalmente com alguém; estabelecer uma conversa. 7. conversar ou fazer afirmações, comentários, observações, referências, sobre determinado assunto ou determinada pessoa. 8. fazer um discurso sobre um tema, por escrito ou oralmente; fazer a apresentação e análise de um assunto. 9. dizer alguma coisa em nome de alguém; expressar o que alguém pensa ou quer. 10. manifestar determinada intenção. 11. ter como assunto, como tema. 12.referir determinado nome ou expressão a propósito de algo. 13.  dizer que existe, que é real. 14. dirigir uma saudação ou fazer um gesto de cumprimento.»

Não obstante, em contexto didático, o uso excessivo do verbo falar poderá ser sinal de pobreza lexical e poderá ser obviado por meio de exercícios como os seguintes:

«Livros de que gosto»
O pronome relativo com preposição

A propósito da construção incorreta «Os livros que gosto mais», a professora Carla Marques apresenta um apontamento sobre o uso de preposições com orações relativas. 

 

(Incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 10 de dezembro de 2023).

 

 

Pergunta:

O uso de «(os)as mais variados(as)» depois do substantivo é um vício ou só estilo?

Exemplo: em vez de «Entender as mais variadas questões», usar «Entender questões as mais variadas».

Grata.

Resposta:

As duas opções são aceitáveis do ponto de vista gramatical, embora a construção com a anteposição do adjetivo pareça ser a mais corrente.

Variado é um adjetivo que significa «que se apresenta em formas múltiplas, diversas, diferentes», «que apresenta diversidade de tipos dentro de uma mesma classe ou espécie»1, entre outras possibilidades. Pode ser colocado em posição pré-nominal ou pós-nominal, ativando significações ligeiramente distintas, como se observa nas frases abaixo:

(1) «Apresentou livros variados.» (de temas diferentes, por exemplo)

(2) «Apresentou variados livros.» (um conjunto alargado de livros)

O adjetivo variado pode ser usado em diferentes graus, sendo um deles o grau superlativo relativo:

(4) «Foram apresentados os mais variados livros.»

Neste grau pode também surgir em posição predicativa:

(5) «Estes livros são os menos variados (da minha biblioteca).»

No grau superlativo relativo de superioridade, o adjetivo pode surgir antes ou depois do nome:

(6) «Ele levantou as questões mais variadas (de todas).»

(7) «Ele levantou as mais variadas questões.»

Quanto à sua estrutura, o sintagma adjetival com gradação no superlativo relativo pode ser composto por «advérbio + adjetivo (+ de + nome/pronome)» ou por «artigo definido + advérbio + adjetivo (+ de + nome/pronome)», pelo que será possível o uso de sintagma adjetival posposto antecedido de artigo definido como em (8):

(8) «Ele levantou questões as mais variadas.»

Pela mesma razão, é tam...