Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Ouço e leio frequentemente a palavra "publicidades", que julgo ser usada por confusão com "anúncios". Sendo a publicidade uma técnica de comunicação que recorre a anúncios, afigura-se-me que o termo "publicidades" não faz sentido.

Afinal, "faz-se publicidade a", não se "faz publicidades a"! O que dizem os especialistas?

O uso do termo "publicidades" é ou não correto?

Obrigada.

Resposta:

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, publicidade pode ter várias aceções. Entre elas, destacamos as que são relevantes para o tópico:

(1) «atividade ou arte que consiste em exercer, por meio de anúncios ou de cartazes, uma ação psicológica sobre o público em geral, com fins essencialmente comerciais

agência de publicidade; campanha de publicidade

publicidade radiofónica; publicidade televisiva

Fizeram publicidade a um detergente.»

(2) «página, texto, cartaz, anúncio com carácter publicitário

A frontaria do edifício estava carregada de publicidade.»

Como de pode observar, o significado que aqui se apresenta em (1) corresponde à técnica / arte / atividade de comunicação, que a consulente refere.

Não obstante, se atentarmos no significado transcrito em (2), publicidade também pode ser equivalente a anúncio. A assimilação deste significado por parte da palavra publicidade pode corresponder a um processo metonímico em que o produto é tomado pelo processo.

A ação da metonímia no significado lexical pode observar-se, a título de exemplo, no uso da marca pelo produto:

(3) «Ele andou no meu BMW.» (BMW por automóvel da marca BMW)

ou do instrumento pelo utilizador:

(4) «Os microfones deram a conhecer o sucedido.» (microfone por jornalista)

Assim sendo, podemos concluir que o uso de <...

Pergunta:

Gostaria de esclarecer a seguinte dúvida: por que razão é classificada nas frases «Ando a ler O ano da morte de Ricardo Reis» (situação iterativa), «Os alunos, naquela tarde de chuva, contavam entusiasmados todo o dinheiro recolhido para a viagem de finalistas» (situação imperfetiva)?

Como distinguir corretamente uma situação iterativa de uma situação imperfetiva?

Obrigada pela atenção.

Resposta:

As frases têm o valor assinalado pelo consulente, sendo que na primeira frase podemos ainda identificar, de forma cumulativa, o valor imperfetivo.

O valor aspetual gramatical imperfetivo está presente quando uma dada situação é perspetivada no seu decurso, sem que se delimitem o seu início ou o seu fim. Nesta perspetiva, ambas as frases, transcritas em (1) e (2), expressam este valor:

(1) «Ando a ler O ano da morte de Ricardo Reis

(2) «Os alunos, naquela tarde de chuva, contavam entusiasmados todo o dinheiro recolhido para a viagem de finalistas.»

O aspeto gramatical iterativo descreve uma situação que se repete num intervalo de tempo que, normalmente, é delimitado, sendo perspetivado como se se tratasse de um evento único. Note-se, porém, que nem sempre o limite final da situação é expresso na frase. Por essa razão, na frase apresentada em (1) identificamos igualmente o valor iterativo: a situação descrita como ler é apresentada como um evento único, o que se consegue pelo efeito do complexo verbal «ando a ler», que perspetiva um conjunto de repetições como um ato único. Bem sabemos do nosso conhecimento do mundo que não se lê um livro ininterruptamente durante 24 horas até chegar ao final, mas o que aqui se tem em consideração é a forma como a situação é apresentada na frase e não do modo como a ação foi desenvolvida por alguém. Na frase (1), não se delimita o fim da situação «ler O ano da morte de Ricardo Reis» (o que é compatível com o valor imperfetivo, como vimos), mas o nosso conhecimento do mundo diz-nos que ela terá um fim, sem que isso implique que se leia toda a obra.

Disponha sempre!

Pergunta:

Caros peritos da língua,

Considerem a frase:

«Putin descreveu o leste da Ucrânia como "território histórico" da Rússia e voltou a insistir que a Rússia tinha tentado negociar um acordo pacífico antes de enviar tropas, mas "foi enganada".»

Como compreender o valor aspetual da construção "tinha tentado negociar"? É télico ou atélico?

Isto parece-me ser aberto à interpretação de cada um da frase.

Estamos a falar de uma ação/tentativa de fazer um acordo? Ou talvez de uma série de tentativas contínuas que se prolongaram por um longo período de tempo? Não tenho certeza, mas talvez o verbo tentar seja por si só um operador aspetual na frase, cujo valor não consigo determinar.

Agradeceria um comentário de um especialista.

Resposta:

O pretérito mais-que-perfeito composto (do indicativo) é um tempo verbal que descreve uma situação concluída, localizada no passado1. Assim, a forma auxiliar aspetual «tinha tentado» é télica, uma vez que implica uma situação com um fim inerente: «tinha tentado negociar» implica que já não «tenta negociar».

O complexo verbal «tinha tentado negociar» é, não obstante, dúbio quanto à sua duração inerente. Não fica claro na frase apresentada pelo consulente se se trata de uma situação pontual, ou seja, que teve lugar uma vez num intervalo de tempo passado, ou de uma situação durativa, ou seja, que se prolongou durante algum tempo num intervalo de tempo passado, o que implica uma série de tentativas.

Sem mais contexto ou sem acesso à intenção do locutor, torna-se difícil identificar o valor aspetual do complexo verbal.

Para além disso, o verbo tentar é ele próprio ambíguo porque «tentar negociar» não significa que alguma vez a negociação entre as partes tenha efetivamente tido lugar, pois tentar significa “fazer esforço ou tratar de conseguir atingir um objetivo; usar meios para chegar a um resultado; mostrar o intento ou a vontade de”. Os valores do verbo apontam apenas para uma intenção e não para uma concretização.

Deste modo, podemos concluir que a formulação «tinha tentado negociar» expressa uma significação ambígua e mesmo difusa, o que poderá, de alguma forma, ser esclarecedor relativamente às intenções do locutor que poderá ter a intenção de não se comprometer com a declaração de realização efetiva de uma situação.

 

1. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 530-531. <...

«Pedra movediça não cria bolor»
Um provérbio com significados opostos

O provérbio «Pedra movediça não cria bolor» dá matéria ao apontamento da professora Carla Marques divulgado no programa Páginas de Português, na Antena 2 (7 de janeiro de 2024).

Pergunta:

«Ricardim gosta da música popular» ou «Ricardim gosta de música popular»?

Qual destas frases fica correctamente escrita desde a perspectiva puramente gramatical? Eu optei pela primeira, já que é uma música específica, ou seja, que Ricardim gosta da música popular.

Grato pelas doutas respostas.

Resposta:

Ambas as frases estão corretas e são, no seu uso corrente, praticamente sinónimas.

A questão convocada pelas frases apresentadas está relacionada com o uso de nome com ou sem artigo definido. A presença ou ausência do artigo definido está relacionado com fatores semânticos, contextuais e individuais que não é possível sistematizar de forma a apresentar como regra a seguir nos usos do português.

Poderemos afirmar, não obstante, que o uso do artigo a introduzir um sintagma nominal habitualmente associa-se a uma referência específica, ao passo que a ausência do artigo contribui para uma referência mais vaga e imprecisa.

Assim, no caso concreto do sintagma nominal «música popular», a sua construção com artigo definido, como em (1), é compatível com a intenção de indicar o tipo particular1 de música de que Ricardim gosta: a música popular face, por exemplo, à música erudita. A presença do artigo contribui para a indicação de uma realidade concreta ou tomada como já conhecida pelos interlocutores:

(1) «Ricardim gosta da música popular.»

Em (2), a ausência de artigo definido é compatível com a apresentação de um conceito abstrato1, relativo aos tipos de música existentes, apontando assim para um conceito de valor genérico:

(2) «Ricardim gosta de música popular.»

Como se pode observar, as diferenças entre as duas frases são, de facto, muito subtis e podem ainda ficar dependentes de razões contextuais que dificilmente poderão ser sistematizadas.

Disponha sempre!