Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A minha dúvida está relacionada com o uso dos pronomes demonstrativos este e esse. Apesar das numerosas respostas acerca do tema, não fiquei esclarecido. A questão é esta: existem significativas diferenças na língua portuguesa brasileira e na língua portuguesa europeia com relação ao uso dos pronomes demonstrativos este e esse?

A presente dúvida é fruto de uma leitura do Manifesto do Partido Comunista, cuja tradução foi elaborada por uma tradicional editora portuguesa:

«Anda um espectro pela Europa – o espectro do Comunismo. Todos os poderes da velha Europa se aliaram para uma santa caçada a este (1) espectro, o papa e o tzar, Metternich e Guizot, radicais franceses e polícias alemães. Onde está o partido de oposição que não tivesse sido vilipendiado pelos seus adversários no governo como comunista, onde está o partido de oposição que não tivesse arremessado de volta, tanto contra os oposicionistas mais progressistas como contra os seus adversários reacionários, a recriminação estigmatizante do comunismo? Deste (2) facto concluem-se duas coisas. O comunismo já é reconhecido por todos os poderes europeus como um poder. Já é tempo de os comunistas exporem abertamente perante o mundo inteiro o seu modo de ver, os seus objetivos, as suas tendências, e de contraporem à lenda do espectro do comunismo um Manifesto do próprio partido. Com este (3) objetivo reuniram-se em Londres comunistas das mais diversas nacionalidades e delinearam o Manifesto seguinte, que é publicado em inglês, francês, alemão, italiano, flamengo e dinamarquês” (MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Editora Avante).

A meu ver, não seria mais adequado:

A) «Esse espectro» em vez de «este espectro (1)», pois o espectro foi a...

Resposta:

Os demonstrativos podem ser usados em português com um valor deítico, apontando para realidades fora do texto, ou com um valor anafórico, apontando para um antecedente textual que constitui a referência do demonstrativo.

Em português europeu, a série de três demonstrativos, este – esse – aquele, mantém plena vitalidade e, na sua significação básica de natureza deítica, assinala a proximidade ou distanciamento do referente relativamente ao locutor ou ao interlocutor.

Se analisarmos, em particular, o funcionamento dos demonstrativos com valor anafórico, percebemos que, sobretudo nos casos em que existem referências múltiplas no mesmo texto, os demonstrativos este – aquele são usados para distinguir os referentes de maior ou menor proximidade textual, como se observa em (1): 

(1) «As gramáticas eram usadas em primeiro lugar e os livros de exercícios surgiam depois. Aquelas serviam para a construção do conhecimento e estes para a sua consolidação.»

Aquelas estabelece relação com «as gramáticas», referente mais distante, e este aponta para o constituinte «os livros de exercícios», constituinte mais próximo do ponto de vista textual.  Considera-se que, em casos desta natureza, os demonstrativos este e aquele constituem um par de...

Pergunta:

Sempre me dei bastante bem com a gramática. Contudo, neste momento, começo a ficar um pouco confusa com algumas funções sintáticas. Tento fazer alguns exercícios para estudar e tentar perceber bem, mas acabo sempre por desistir, já que fico bastante frustrada comigo mesma por errar e parecer cada vez mais confusa a cada exercício que faço. A minha dúvida é: como posso identificar (e "distinguir") bem, em qualquer frase, os modificadores (do nome, do grupo verbal e o apositivo) e o complemento do nome?

Obrigada desde já!

Resposta:

A diferença basilar entre complementosmodificadores reside no facto de os primeiros serem selecionados por uma palavra, completando-lhe o sentido, enquanto os segundos são constituintes que não são selecionados, introduzindo na frase informações adicionais.

Os complementos do nome são constituintes essenciais para que a realidade sobre a qual se pretende falar seja claramente explicitada. Por exemplo, se utilizarmos o nome amigo, percebemos que este necessita de um complemento para referir toda a realidade, pois um amigo é sempre «amigo de alguém». Note-se, no entanto, que é possível utilizar estes nomes que pedem complemento isoladamente, o que leva a que a frase fique com um sentido mais vago ou genérico, como se observa pelo confronto entre (1) e (2):

(1) «O amigo do Rui toca guitarra.»

(2) «O amigo toca guitarra.»

Embora não seja possível elaborar uma listagem completa dos nomes que pedem complemento, é possível identificar alguns que normalmente se constroem com este constituinte:

(i) nomes deverbais: nomes formados a partir de verbos que se constroem com complemento, estrutura que o nome mantém: «Destruir uma casa» - «A destruição da casa»;

(ii) nomes fragmentadores: «uma fatia de…» ou «uma parte de…»;

(iv) nomes argumentais: «auto...

Pergunta:

Na frase «O filme cujo guião a Ana escreveu foi premiado» (= «A Ana escreveu o guião do filme»), devem ser ou não colocadas vírgulas na oração subordinada? Podemos considerá-la uma oração subordinada adjetiva relativa restritiva?

Obrigada.

Resposta:

A oração não deve surgir entre vírgulas porque é uma oração subordinada adjetiva relativa de tipo restritivo.

A natureza restritiva desta relativa pode ser comprovada de dois pontos de vista:

(i) ponto de vista prosódico e sintático: esta oração forma com o nome filme, seu antecedente, um único grupo sintático e prosódico;

(ii) ponto de vista semântico: a oração, ao incidir sobre o antecedente, restringe o seu significado (o nome filme passa a referir-se não a um filme indeterminado, mas ao filme específico que tem um guião escrito pela Ana).

Disponha sempre!

Pergunta:

Há algo que vi recentemente, nunca havia pensado nisso, mas me surgiu do nada. Em casos como «É proibido estritamente usar, copiar ou referir-se a qualquer tipo de conteúdo protegido por direitos autorais», o correto seria «se referir», já que o advérbio estritamente estaria diretamente ligado aos três verbos, forçando o uso da próclise?

Ou ele só modificaria o primeiro verbo, como por exemplo: «Fuja imediatamente caso se sinta, veja-se ou imagine-se em situação de perigo.»

Ou, nesses casos, o advérbio obrigatoriamente deve estar entre vírgulas, podendo-se utilizar a ênclise?

Agradeço desde já.

Resposta:

A frase «É proibido estritamente usar, copiar ou referir-se a qualquer tipo de conteúdo protegido por direitos autorais» está correta.

Esta é uma frase copulativa cujos constituintes têm as seguintes funções:

(i) Sujeito: «usar, copiar ou referir-se a qualquer tipo de conteúdo protegido por direitos autorais»

(ii) Predicativo do sujeito: «É proibido estritamente»

Esta divisão da frase em constituintes mostra-nos que o escopo do advérbio estritamente é o adjetivo proibido, pelo que não afeta o conjunto de orações coordenadas que desempenha a função de sujeito, não funcionando, portanto, como atrator de próclise

Disponha sempre!

Pergunta:

Qual a forma correcta de escrever a seguinte frase: «Trabalhavam para comerem"», ou «Trabalhavam para comer»?

Inclino-me para a segunda opção, mas não sei porquê.

Muito obrigada!

 

[N.E. – A consulente escreve correcta, seguindo a ortografia anterior à que está em vigor, que prescreve correta.].

 

 

Resposta:

O constituinte «para comerem» é uma oração subordinada adverbial final. Estas orações podem ser introduzidas pela locução conjuncional para que, que se constrói com modo conjuntivo (1), ou pela conjunção para, que se constrói com infinitivo, pessoal ou impessoal (2):

(1) «O João fez o jantar para que ela descansasse um pouco.»

(2) «Ele sentou-se para descansar um pouco.»

Nas orações construídas com infinitivo, usa-se o infinitivo impessoal, ou seja, a forma infinitiva que não flexiona, quando o sujeito das duas orações, subordinante e subordinada é o mesmo. É o que se verifica em (2). Esta é a forma preferencial, todavia, em certos casos, há quem use infinitivo pessoal por razões estilísticas, como se refere aqui e aqui.

O infinitivo pessoal, ou seja, a forma do infinitivo que flexiona, usa-se quando o sujeito da oração subordinante é diferente do da oração subordinada. Neste caso, o sujeito da subordinada deve ser expresso e o verbo no infinitivo concordará com ele:

(3) «Ele escreve um livro para as crianças compreenderem a importância da amizade.»

Assim, a frase apresentada pela consulente terá como forma preferencial: