Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Tenho uma dúvida sobre esta frase, a qual julgo que está mal construída. Não sei o que quer dizer: «É tão cedo ainda e já tão tarde o que sei.»

Aparece na canção "No dia seguinte", interpretada por Paulo Brissos (Festival RTP da Canção 1993), com letra de Nuno Gomes dos Santos e música de Jan Van Dijck.

Contexto: «Era tão certo o amor que eu inventei/Estava tão perto e, mesmo assim, não sei/Se fui eu que bebi demais, se fui eu que entornei/Este copo de água da sede que não matei/Se fui eu que bebi demais, se fui eu que entornei/Este copo de água da sede que não matei/É tão cedo ainda e já tão tarde o que sei.»

Obrigado.

Resposta:

Se considerarmos que o verso apresentado não tem elementos elididos, poderemos propor a seguinte análise sintática dos seus constituintes:

«o que sei» - sujeito

«cedo e tão tarde» - predicativo do sujeito (composto por dois constituintes coordenados)

«ainda» e «já» - modificadores

Nas orações copulativas, quando o predicativo do sujeito é um advérbio temporal, este impõe restrições sobre o sujeito. Como refere Raposo, «um predicador temporal pode ocorrer com sujeitos que denotam uma situação (cf. [O concerto foi tarde/cedo/ontem/antes/ de manhã]), mas não com sujeitos que denotam entidades concretas (cf. a impossibilidade de *o Pedro foi/está tarde / ontem, *a pedra foi/está cedo / de manhã)» (Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1596).

Assim, se considerarmos que a oração relativa «o que sei» não corresponde a uma situação com temporalidade intrínseca, o verso apresenta, com efeito, uma anomalia semântica.

Todavia, não podemos esquecer que estamos no campo da construção poética, que se caracteriza também por explorar sentidos que nascem de associações que a norma não prevê nem aceita. Nesta ótica, o verso em questão constitui um desafio à interpretação e, por isso mesmo, enriquece o poema, introduzindo-lhe densidade.

Finalmente, não poderemos desprezar a possibilidade de no verso terem sido elididos constituintes (por uma questão de ritm...

Pergunta:

Na frase «cansei de estudar», qual é classificação sintática da expressão «de estudar»? E a transitividade do verbo cansar?

Resposta:

Se aceitarmos que neste contexto o verbo cansar tem o significado de «enfastiar-se» ou «fatigar-se», então o constituinte «de estudar» terá a função de complemento oblíquo (ou adjunto).

Nesta interpretação, o verbo cansar é transitivo indireto e rege a preposição de, que, por sua vez, tem como complemento uma oração subordinada infinitiva – ou oração reduzida  –   (estudar).

Na variante europeia do português, sentir-se-á como mais natural a construção «Fiquei cansado de estudar».

Refira-se ainda que o verbo pode ser usado como auxiliar em construções como:

(1) «Cansei-me de o mandar estudar.»

Nesta construção, o verbo auxiliar mandar «indica a ideia de insistência da ação (aspecto incoativo)» (in Dicionário Houaiss).

Pergunta:

A gramática de português do Celso Cunha e Lindley Cintra diz que as conjunções que relacionam termos ou orações de idêntica função gramatical têm o nome de coordenativas.

Referente à afirmação do livro: o que são termos de idêntica função gramatical? Função gramatical é classe gramatical ou função sintática (como sujeito)?

Grato.

Resposta:

Termos com função gramatical idêntica são constituintes que funcionam num mesmo nível de hierarquia sintática. Por sua vez, as conjunções coordenativas  têm como função conectar constituintes num mesmo plano sintático. 

Recorde-se que as conjunções podem coordenar itens lexicais, grupos nominais ou orações (independentes, subordinadas completivas e subordinadas infinitivas).

Uma conjunção coordenativa pode articular dois constituintes no interior

(i) da função sujeito: «O Rui e o António já chegaram.» (O sujeito composto é formado pelos nomes próprios coordenados «O Rui e o António»;

ou, por exemplo,

(ii) da função complemento direto: «Eu disse que ia chover e que ia fazer frio.» (o complemento direto é formado pelas 

Pergunta:

Agradecia que me esclarecessem se esta frase está correta:

«A Rita fala com o Pedro referindo como se apaixonou pela pintura.»

A minha dúvida prende-se com a utilização do verbo referir seguido da palavra como.

Muito obrigado.

Resposta:

O verbo referir pode ser construído com o advérbio relativo como. Esta questão não envolve, portanto, um caso de regência verbal, mas sim a possibilidade de o verbo referir poder ser construído com uma oração subordinada relativa introduzida por como, na qual o uso do advérbio como é equivalente à expressão «a maneira como».

Esta possibilidade aparece prevista no Dicionário sintáctico de verbos portugueses, de W. Busse (p. 357), sendo apresentado como exemplo:

(1) «As instruções referiam também como proceder em caso de catástrofe.» (= «referiam a maneira como proceder em caso de catástrofe»)

A mesma situação está presente na frase apresentada:

(2) «A Rita fala com o Pedro referindo como se apaixonou pela pintura.» (= «referindo o modo como se apaixonou pela pintura») 

Disponha sempre!

Pergunta:

Procurando em vários locais, encontrei definições bastante confusas sobre antonomásia e perífrase. Gostaria de saber:

1. A diferença entre antonomásia e perífrase.

2. Antonomásia é considerada um caso particular de metonímia?

3.  Por que perífrase não é considerada um caso de metonímia?

Obrigado!

Resposta:

A antonomásia «consiste na substituição de um nome comum por um nome próprio  ou, ao contrário, de um nome próprio por uma caracterização, universalmente reconhecida, da respectiva personalidade: «Ele sempre foi um D. João» ("D. João" por "conquistador" ou "mulherengo"); ou "o filósofo", na Idade Média (em vez de "Aristóteles").» (Falar Melhor, Escrever Melhor, p. 503)1. Assim, trata-se de uma figura por meio da qual se designa alguém ou alguma coisa pelo nome comum ou o da espécie a que pertence (ou vice-versa) – um nome próprio pode ser substituído por um nome comum (1) ou o inverso (2):

(1) «A Dama de Ferro retirou-se.  (em vez de Margaret Thatcher)

(2) «O nosso pequeno Camões fez um poema.» (em lugar do nome do filho)

A antonomásia pode ser também considerada um tipo de metonímia (ou, mais concretamente, um subtipo de sinédoque, se considerarmos esta um caso especial de metonímia). Noutras situações, será uma variante da perífrase, quando se forma com uma expressão analítica, ou seja, mais longa e descritiva.

A perífrase consiste na «substituição de um termo próprio e único por uma série de palavras, uma locução, que o define ou parafraseia; operaç...