Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostava de saber a diferença, mesmo que fosse muito subtil ou ligeira, entre os termos «história de encantar» e «conto de fadas».

Contexto: «Os contos de fadas/As histórias de encantar nunca se caracterizaram pela sua credibilidade, já que o seu público-alvo são as crianças.»

Mais um: «Eu não tenho nada mais p'ra te dar/ Esta vida são dois dias e um é para acordar/ Das histórias de encantar/ Das histórias de encantar (ViagensPedro Abrunhosa – 1994)

Com os meus agradecimentos, queria desejar-lhes um ótimo início do verão.

Resposta:

Nas consultas efetuadas, não encontrámos uma tipologia que trate a diferença entre «história de encantar» e «conto de fadas». Aliás em diversos textos, o conto de fadas é descrito como um género que pode incluir elementos de encantamento, tanto no sentido de produzir maravilha como no de incluir elementos mágicos.

Não obstante, Michelle Simonsen, na sua obra Le conte populaire (Paris: PUF, 1984) propõe a seguinte tipologia:

i.        Contos maravilhosos: agrupa os contos de fadas e os seus antinómicos, as bruxas, as feiticeiras, os ogres.

ii.       Contos de animais: colocam em cena animais como únicos protagonistas, ou como protagonistas principais.

iii.      Contos etiológicos: dão explicações sobre a origem ou causa de determinados fenómenos ligados à natureza, sem preocupação de veracidade («A lua e o sol», «Os três rios»).

iv.      Contos faceciosos: contos para rir, em que a paleta do riso se pode alimentar de vária...

Pergunta:

«Eu posso determinar o valor das forças relativamente fácil.»

Ouvi essa frase em um curso de Astrofísica, veio-me a dúvida: colocar «de forma» antes de «relativamente» constituiria uma redundância ou seria necessário? A frase está gramaticalmente correta?

Obrigado!

Resposta:

A frase não é aceitável na variante de português europeu.

Na frase apresentada, o adjetivo fácil incide sobre o verbo determinar, o que não é aceitável do ponto de vista sintático:

(1) «*Eu posso determinar fácil o valor das forças.»

Tipicamente, o adjetivo é uma classe que se combina com o nome ou com o grupo nominal. Daí a agramaticalidade e a estranheza que a frase (1) produz.

A classe que habitualmente se combina com o verbo é a do advérbio, pelo que, numa frase correta, o adjetivo fácil poderia ser convertido num advérbio de modo:

(2) «Eu posso determinar facilmente o valor das forças.»

Todavia, esta opção não seria compatível com o uso do advérbio relativamente. Caso se pretenda manter a modalização introduzida por este último advérbio, a solução seria optar por uma frase que expresse a mesma ideia:

(3) «Eu posso determinar o valor das forças com relativa facilidade.» 

 

Nota: A respeito desta resposta e do uso adverbial de adjetivos no Brasil, enviou-nos o consulente Fernando Bueno (Belo Horizonte, Brasil) as seguintes considerações:

«Sobre a consulta feita com o tema acima, em 26/6/2019, é preciso lembrar o uso de adjetivos fazendo as vezes de advérbios de modo (pelo menos no Brasil), como, por exemplo: "O lutador derrotou fácil (por "facilmente") o oponente", "O aluno se dirigiu ríspido (por "rispidamente") ao professor" . Assim a frase apresentada estaria correta por aqui: "Eu posso determinar fácil o valor das forças ". É cl...

Pergunta:

Posso dizer «Eu e os meus amigos», ou «Os meus amigos e eu»?

Uma falante da língua francesa disse-me que em francês não pode existir a segunda possibilidade[1], mas na língua portuguesa não me soam mal ambas as hipóteses supracitadas. Estarei errada?

Grata pela vossa atenção.

 

[N.E. (1/07/2019) – Trata-se de um equívoco, porque em francês, por uma questão de delicadeza, o recomendado é «mes amis et moi» (= «os meus amigos e eu»), ou seja, o pronome de 1.ª pessoa vem depois da referência a outras pessoas – «ma femme et moi» (= «a minha mulher e eu»), e não «moi et ma femme»). Cf. moi na versão em linha do Dictionnaire Larousse)].

Resposta:

Ambas as possibilidades estão corretas. A escolha de uma ou outra posição está dependente de regras de cortesia ou de outra natureza.

A colocação do pronome eu em último lugar pode ficar a dever-se a uma regra de cortesia, que procura evitar uma atitude de imodéstia:

(1) «A Maria, a Rita e eu fizemos este trabalho.»

No entanto, esta preocupação com a cortesia pode deixar de ser pertinente se uma outra razão pragmática justificar a colocação do pronome eu em primeiro lugar. Cunha e Cintra referem, por exemplo, que o pronome deverá abrir a sequência «se, porém, o que se declara contém algo de desagradável ou importa responsabilidade» (Nova Gramática do Português Contemporâneo. Edições Sá da Costa, p. 289). Os mesmos apresentam como exemplo a frase:

(2) «Eu, Carlos e Augusto fomos os culpados do acidente.» (Ibidem)

Importa ainda referir que a presença do pronome de primeira pessoa condiciona a flexão verbal na primeira pessoa do plural («Eu, Carlos e Augusto» = «Nós»).

Disponha sempre!

Dos «dedos na ferida» à «amnésia seletiva»
As metáforas no mundo da política

«Os acontecimentos mais recentes têm trazido ao espaço mediático português tensões entre partidos políticos, situações problemáticas relacionadas com factos presentes e passados e opiniões e depoimentos geradores de polémica intensa. Nestes domínios a metáfora singra como opção para descrever as dificuldades»,escreve a professora Carla Marques, neste apontamento sobre o usos da metáfora na política. 

Pergunta:

Gostaria de saber quando usar de e mais, por exemplo, «já não tenho ganas de o fazer», «não tenho mais ganas de o fazer».

Júlio Moreira refere que é erro usar de mais em lugar de . Mas a que situações é que esse uso se aplica? Em que casos é que se emprega «já não» e «não mais»? Lendo José Luís Peixoto, tenho vindo a observar a presença de já não, embora noutras passagens ele se valha de não mais. Quando é que se deve usar «não mais» e quando «já não» de acordo com a norma culta portuguesa?

Reconhecido imensamente ao vosso trabalho.

Resposta:

Com efeito, algumas abordagens da língua consideram a construção «não mais», usada com valor temporal, um galicismo, defendendo ser preferível a opção por «já não».

Todavia, atualmente, as expressões, quando têm um valor temporal, são quase sinónimas e estão ambas corretas. A diferença entre elas tem lugar no plano aspetual, pois o advérbio é usado quando o locutor pretende transmitir uma expectativa relativamente a algo que esperava que viesse a acontecer1:

(1) «O Pedro já começou a falar.»

Neste caso, o uso do advérbio evidencia que o locutor tinha a expectativa de que o Pedro falasse.

Quando se afirma, como na frase apresentada pelo consulente:

(2) «Já não tenho ganas de o fazer.»

sinaliza-se que havia a expectativa de que uma dada situação tivesse lugar, o que não vai acontecer.