Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«A história da dança tem sido escrita há séculos».

Esta frase está correta?

Tenho dúvidas porque, por um lado, pode ter um significado de duração (ex: trabalho nesta empresa há oito anos), mas, por outro, nesta frase, parece-me que remete para uma localização temporal no passado, com o sentido de «foi escrita há séculos». «A história da dança tem sido escrita ao longo de séculos» soa-me melhor, mas não posso afirmar que a outra esteja incorreta. Gostaria que esclarecessem esta questão, por favor.

Obrigada pelo vosso trabalho.

Resposta:

A frase apresentada não é aceitável por apresentar problemas no plano da semântica temporal.

A questão colocada exige a análise de dois aspetos distintos: o valor temporal expresso pelo complexo verbal «tem sido escrita» e o valor temporal da construção de valor temporal com o verbo haver.

O complexo verbal «tem sido escrita» encontra-se no pretérito perfeito composto da forma passiva. Do ponto de vista aspetual, este tempo veicula um valor aspetual imperfetivo (de ação ainda não concluída) e iterativo (representa situações que se repetem múltiplas vezes). Para além destes valores, descreve ainda um intervalo temporal que teve início antes do momento de enunciação, não tendo, todavia, um limite final definido (este projeta-se algures no futuro).

Por sua vez, o verbo haver surge numa construção temporal com um valor de duração1. Esta construção identifica um intervalo temporal localizado a partir do momento de enunciação e que se projeta no passado. Por essa razão, esta construção combina-se de forma natural com estados (1) ou atividades (2), que não têm uma delimitação temporal, localizando-as temporalmente:

(1) «Ele é simpático há anos.»

(2) «Ele mora no Porto há dois anos.»

Por exemplo, no caso da frase (2), a localização feita pela expressão «há dois anos» expressa a duração da atividade «morar no Porto», que corresponde a um intervalo de dois anos a contar do momento de enunciação para trás.

Ora, no caso da frase apresentada, os valores do complexo verbal e da construção co...

Pergunta:

Como faço para diferenciar a palavra então de advérbio e conjunção (principalmente conclusiva)?

Grato.

Resposta:

Tradicionalmente, então é considerado um advérbio de tempo (cf. Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo. Ed. Sá da Costa, p. 549). Neste caso, então incide sobre o grupo verbal, estabelecendo um intervalo temporal para a situação descrita:

(1) «O João chegou a casa. Preparou-se, então, para dormir uma sesta.»

Enquanto advérbio de tempo, então tem também uma função de anáfora textual, uma vez que retoma o intervalo de tempo construído na situação anterior («chegar a casa»), definindo-a como ponto de partida para o desenvolvimento da situação seguinte («dormir uma sesta»). Neste caso, então não é uma conjunção porque não tem a função de relacionar duas orações.

Então pode ser usado com uma função semelhante à de uma conjunção quando tem um valor argumentativo1, como em:

(2) «O João adora dançar, então vai participar no concurso.»

Neste caso, então relaciona as duas orações, introduzindo uma conclusão que se pode extrair do que ficou dito anteriormente. Nesta situação, equivale a portanto.

Também é possível assinalar um uso de então com comportamento geral de conjunção em frases condicionais como:

(3) «Se queres ganhar o concurso, então tens de treinar todos os dias.»

Na frase (3), então introduz a oração que apresenta a condição necessária para a concretização da situação descrita na oração subordinada.

Numa perspetiva de análise do texto, então funciona nestas s...

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Pergunta:

Com referência à consulta de 17/4/2020, cuja resposta circunstanciada abordou elegantemente as sutilezas sintáticas que envolvem a frase examinada, vejo-me forçado a retomar o assunto para aclarar um ponto restante de sombra.

Aqui, o período: «Anda por retos caminhos, que assim vais plasmar tua integridade e a virtude será teu brasão.»

Assumindo, como foi aventado na resposta, que a terceira oração ("e a virtude será teu brasão") é passível de ser considerada subordinada (consecutiva, no caso), seria ela subordinada a qual oração subordinante? À primeira? À segunda? Ou a ambas, que assim formariam um grupo semântico, cuja consequência é exposta na terceira?

Eis o que eu gostaria de saber. Com antecipados agradecimentos.

Resposta:

A resposta à questão colocada pelo consulente exige que estabeleçamos uma clara distinção entre dois planos de análise: o sintático e o semântico (e pragmático).

Formalmente, no plano sintático, as orações introduzidas por que são duas orações coordenadas, sendo o constituinte «e a virtude será o teu brasão» uma oração coordenada copulativa.

Não obstante, a interpretação associada à conjunção e pode ser muito variada, indo da simples adição (1) ao valor adversativo (2), à sequência temporal (3) ou ao conclusivo (4)1, entre outros:

(1) «Eu comi uma maçã e tu bebeste um sumo.»

(2) «Trabalhei imenso e não consegui entregar o trabalho.» (= mas)

(3) «Levantou-se e foi tomar banho.» (= depois disso)

(4) «Está doente e não vai entregar o trabalho.» (= por isso, portanto)

Este último valor (também designado inferencial) é descrito por Faria da seguinte forma: «As conexões inferenciais exprimem um argumento lógico. Pertencem a este tipo de conexões coordenativas em que o conteúdo proposicional do segundo membro coordenado é inferível a partir do primeiro, apresentado como razão ou motivo» (in Mira Mateus et al. Gramática da Língua Portuguesa. Caminho, p. 97).

 

Ora, no caso em apreço, também poderemos considerar a possibilidade de uma interpretação na qual a oração «vais plasmar tua integridade» é apresentada como a causa que terá como consequência «a virtude será teu brasão»:

(5) «vais plasmar tua integridade e (assim / consequentemente) a virtude será teu brasão.»

Estamos, to...

Pergunta:

No período «O pior ainda está por vir», os termos «está por vir» formam uma locução verbal ou duas orações?

Grata pela resposta.

Resposta:

No caso em apreço, a construção «estar por + infinitivo» forma um complexo verbal, no qual estar (por) funciona como verbo auxiliar que incide sobre o verbo principal atribuindo-lhe o aspeto de ação ainda não iniciada. Não estamos, portanto, perante duas orações, mas uma única.

A este propósito, consulte-se também a resposta «Estar por vir» vs. «estar para vir».

Disponha sempre!