Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Agradecia que me esclarecessem se a frase apresentada é admissível: «Ele pretendia ser mais do que o que era.»

Obrigado.

Resposta:

A frase é admissível, embora possa ser considerada pouco elegante.

A frase apresentada é uma construção comparativa assente na estrutura «mais do que1 + oração», que pode, por exemplo, corresponder a (1):

(1) «O João trabalha mais do que a Ana trabalha.»

No caso em apreço, a oração que segue a estrutura «mais do que» é uma oração subordinada relativa introduzida por «o que», similar a (2):

(2) «Aquele jovem trabalha mais do que o que contrataste ontem.»

Em casos desta natureza, considera-se que a estrutura «o que»2 tem um nome elidido que seria determinado por o, pelo que (2) é equivalente a (2a):

(2a) «Aquele jovem trabalha mais do que o [jovem] que contrataste ontem.»

Na frase em questão, a interpretação do nome elidido torna-se mais complexa porque estamos perante uma significação ambígua introduzida pelo valor genérico da expressão «ser mais». De qualquer forma, fica claro que a expressão «o que» é, neste caso, equivalente a «aquilo que»:

(3) «Ele pretendia ser mais do que aquilo que era.»

Em termos estilísticos, todavia, a frase apresentada não será a mais elegante devido à sequência de duas estruturas «que»: «do que o que», pelo que, num texto mais formal, seria de procurar determinar com clareza o conceito que se compara, de forma a construir uma frase mais equilibrada e agradável ao ouvido. A este propósito, leia-se também a resposta «Melhor do que pensava».

Disponha sempre.

Pergunta:

Entendo que "né" é um advérbio, resultado da contração da locução "não é", gostaria de saber. "Né" é um advérbio de dúvida? "Não é?" é uma locução adverbial ou verbal? "Né" é aceito na linguagem culta, é registrado?

Resposta:

A forma (resultante da contração de «não é?») surge já nalguns dicionários, como é o caso dicionário Houaiss ou do dicionário Priberam em linha. Trata-se de um advérbio próprio de um contexto oral e coloquial, o que significa que não é aconselhado na escrita (a não ser que se pretenda reproduzir as marcas de oralidade) nem em contextos formais.

pode ser usado como marcador conversacional, tendo como função assinalar

(i) um pedido de confirmação ou de concordância:

     (1) «O jogo acabou, né?»

(ii) uma pausa no discurso:

     (2) «E agora não digo mais nada porque uma pessoa também fica cansada de falar, né?»

Quando usado com o valor assinalado em (i), podemos considerar que é usado como um advérbio de dúvida.

Não obstante, a forma contraída pode ser utilizada apenas como um marcador de turno de fala, caso em que já será difícil atribuir-lhe o valor de um advérbio de dúvida. Neste contexto, será um mero indicador fático, não transmitindo qualquer informação discursiva.

Note-se, por fim, que a forma não contraída «não é?» pode ser usada nas mesmas situações em que encontramos o uso de né. Se esta estiver ao serviço da marca de dúvida, será uma locução adverbial com valor de dúvida (tal como acontece com a contração usada com o valor (i)).

Pergunta:

Haverá alguma incorreção na expressão «centro de propagação do vírus», quando pretendemos referir o local de onde irradiou o contágio?

Não será um caso de abuso, incorreção, ou "novo-riquismo" (linguístico), o uso de epicentro (nesta e noutras circunstâncias idênticas) em vez de centro?

Muito obrigado.

Resposta:

Epicentro é um termo da área da geofísica que designa o «ponto da superfície da Terra onde primeiramente chega a onda sísmica» (Dicionário Houaiss), enquanto a palavra centro refere o «ponto em relação ao qual equidistam os pontos de uma circunferência ou de uma superfície» (Ibidem). Assim, o epicentro, para além de manter a noção associada a centro (radical que integra a palavra), acrescenta-lhe a ideia de que este é o ponto onde o abalo é mais intenso.

Por extensão, esta mesma noção tem sido aplicada à zona onde se verifica um número de contágios superior ao das restantes regiões e onde a disseminação ocorre de forma mais rápida. Acrescente-se que a palavra centro apenas teria a capacidade de localizar um território, não referindo a sua intensidade.

Por estas razões, a meu ver, a utilização da palavra epicentro é válida nos contextos em que tem ocorrido, sendo passível de ser utilizada em contextos como os apresentados abaixo:

(1) «OMS diz que EUA podem tornar-se o "epicentro" da pandemia de Covid-19» (SIC Notícias)

(2) «Nova Iorque tem 25 mil casos e arrisca tornar-se o epicentro da pandemia» (Diário de Notícias)

Recorde-se, ainda, que a este propósito, o Ciberdúvidas aconselhou, nesta

Pergunta:

Queiram, por favor, explicar o que é «conteúdo proposicional».

Grata.

Resposta:

O conteúdo proposicional diz respeito ao valor semântico de um dado enunciado, ou seja, designa aquilo que se refere.

Atentemos, por exemplo, nas seguintes frases:

(1) «O João escreve o texto.»

(2) «João, escreve o texto.»

(3) «Gostava que o João escrevesse o texto.»

(4) «Escreverá o João o texto?»

Todas elas têm o mesmo conteúdo proposicional, que poderia ser verbalizado como «João escreve o texto».

A diferença entre eles está relacionada com o objetivo do locutor ao realizá-los: (1) produzir uma asserção; (2) dar uma ordem; (3) expressar um desejo; (4) formular uma interrogação (ver «Atos ilocutórios»).

Esta interpretação dos factos linguísticos enquadra-se na teoria dos atos de linguagem proposta por Austin e Searle1.

Disponha sempre!

 

1. A este propósito, para uma visão de âmbito escolar, consulte-se o Dicionário Terminológico 2008 (disponível aqui). 

Pergunta:

«O elemento foi pego em flagrante pela nossa equipe de força policial; com o mesmo* foi encontrada certa quantia em drogas, além de uma arma de fogo e dinheiro trocado".»

Usa-se com frequência o termo «o(a) mesmo» como recurso de retomada do termo citado anteriormente, (função dos pronomes?).Vejo certa construção usada na linguagem policial, como um jargão já consagrado; vi em alguns textos jornalísticos e, por incrível, ser empregado em algumas redações do ENEM a que tive acesso.

Gostaria de saber se é aceitável fazer certo uso, substituindo o pronome. Gostaria também da vossa opinião de como ficaria o trecho citado no começo, caso se substituísse o termo por um pronome, e gostaria de saber qual seria o pronome equivalente para a substituição.

Alguns colegas me apontaram como sendo o pronome ele, mas não achei tão formal o uso.

Agradeço atenciosamente a resposta.

Resposta:

Na qualidade de pronome demonstrativo, mesmo pode proceder a uma retoma anafórica, ou seja, representar o antecedente na sua oração. É esta a situação que ocorre na frase apresentada pela consulente, uma vez que «o mesmo» retoma o sintagma nominal «o elemento». Trata-se de um processo de relação anafórica válido, sendo também possível ser realizado pelo pronome pessoal ele:

(1) «O elemento foi pego em flagrante pela nossa equipe de força policial; com ele foi encontrada certa quantia em drogas, além de uma arma de fogo e dinheiro trocado.»

Não obstante, como refere Maria Helena Moura Neves¹, «É condenado em alguns manuais tradicionais o uso de o mesmo, os mesmos, as mesmas para referência a alguma pessoa ou a alguma coisa já mencionada (valendo por ele, ela, eles, elas, respectivamente)».1

Apesar desta advertência, o que é certo é que na comunicação social, tanto em português do Brasil como em português europeu, encontramos muitos exemplos de retoma anafórica de sintagmas verbais ou orações com recurso a «o mesmo», como se observa nos exemplos seguintes, nos quais se destaca a negrito o constituinte retomado:

(2) «Esta barragem foi construída pelo método de alteamento a montante, o mesmo usado nas barragens que se romperam em Brumadinho e em Mariana.» (