Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Agradecendo antecipadamente a vossa resposta, pergunto se todos os elementos que recuperam anafórica ou cataforicamente um referente podem ser considerados deíticos textuais.

Resposta:

Em termos gerais, no plano da deixis textual, os elementos que dependem referencialmente de outros podem ser considerados deíticos textuais.

Sempre que o conteúdo referencial de uma expressão depende do de outra expressão que tem um conteúdo referencial próprio, estamos perante um caso de referência textual. De forma global, as relações referenciais estabelecem-se entre uma expressão nominal plena, que tem um significado independente, e uma palavra que é referencialmente dependente. Esta relação leva que a expressão nominal plena funcione como antecedente, falando-se, então, de uma relação anafórica. Se a expressão referencial plena surgir depois da expressão dependente, falar-se-á de relação catafórica.

Existem, no entanto, casos específicos que terão de ser analisados de forma particular, que estão relacionados com as relações de referência, o seu tipo e com as classes que podem estabelecer essas mesmas relações, pelo que a questão colocada poderá ter de ser reequacionada em situações específicas1.

Disponha sempre!

 

1. Para maior aprofundamento desta questão, sugerimos, por exemplo, a leitura do Capítulo "Dependências Referenciais" de Maria Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2177-2227.

Pergunta:

«É uma obra para se ler, ver e ouvir.» = «É uma obra para ser lida, vista e ouvida.»

As frases acima (sinónimas) parecem ser gramaticais, mesmo sem a repetição do «se» apassivante, na primeira, e de «para ser», na segunda.

Já nos exemplos abaixo, a primeira frase parece ficar agramatical sem o «se» (complemento direto) do verbo «tornar-se», enquanto a frase equivalente é claramente agramatical pela mesma razão.

«Foi um jogador que se afirmou e tornou um craque.» = «O jogador afirmou-se e tornou um craque.»

Em que casos pode evitar-se a repetição do clítico se numa sequência/enumeração verbal em próclise?

Obrigado.

Resposta:

A omissão do clítico se pode acontecer em contextos de coordenação de orações que incluam os clíticos em próclise, ou seja, antes do verbo.

Antes de mais, é importante esclarecer que entre o primeiro grupo de frases e o segundo não se pode estabelecer um verdadeiro paralelismo porque estamos perante realidades gramaticais muito distintas.

A equivalência entre as frases (1) e (2) resulta do facto de ambas incluírem orações passivas (destacadas a negrito), resultantes ora da ação da partícula apassivante se, que constrói uma passiva sintética, ora da construção passiva mais tradicional

(1) «É uma obra para se ler, (se) ver e (se) ouvir

(2) «É uma obra para ser lida, (ser) vista e (ser) ouvida

Note-se ainda que o que se omite na frase (2) é o verbo auxiliar, que se assinala entre parênteses. Esta construção pode ter lugar em estruturas coordenadas.

No segundo grupo de frases não estamos perante frases passivas. A partícula se que aí se utiliza é parte integrante dos verbos pronominais afirmar-se e tornar-se.

No que diz respeito ao segundo conjunto de frases, aqui identificadas como (3) e (4), a diferença identificada está relacionada com o facto de o pronome clítico se aparecer em posição de próclise, ou seja, antes do verbo, ou em, posição de ênclise, ou seja, depois do verbo:

<i>Contração</i>, <i>retração</i> e <i>contenção</i>
Três palavras emergentes da crise económica

No seu discurso na Assembleia da República no âmbito da discussão do Orçamento de Estado, o ministro do Estado e da Economia português, Pedro Siza Vieira, usou indistintamente as palavras contração, retração e contenção. É a revisão dos significados destes termos e aquilo que os distingue que motiva a reflexão da professora Carla Marques

 

Pergunta:

Fui surpreendido com a seguinte análise sintática:

Na frase «Amarraram uma rede aos troncos», o constituinte «aos troncos» é substituível por lhes e classificado de complemento indireto.

Fico na dúvida se não é complemento oblíquo.

Podiam elucidar-me sobre esta classificação?

Obrigado pelo vosso trabalho.

Resposta:

Na frase em questão, o constituinte «aos troncos» desempenha a função sintática de complemento indireto.

A função de complemento indireto identifica-se pela possibilidade de substituição do constituinte pelo pronome pessoal na forma dativa -lhe(s), o que se verifica neste caso:

(1) «Amarraram-lhes uma rede.»

O constituinte com função de complemento indireto permite também o redobro do clítico, como se observa na manipulação da frase (2):

(2) «Eu dei uma prenda à Joana.» = «Eu dei-lhe uma prenda a ela

O mesmo processo pode ser aplicado à frase em análise:

(3) «Amarraram-lhes uma rede a eles.»

Alguma dúvida na identificação da função deste constituinte pode advir do facto de ele ter uma natureza [-Hum] (sendo que tipicamente o complemento indireto tem uma natureza [+Hum]) e de não desempenhar a função semântica de destinatário. Não obstante, é possível identificar constituintes que, tendo a função de complemento indireto, são [-Hum], como acontece em (4):

(4) «Eles fizeram uma enorme limpeza à casa1

É possível também o complemento indireto ter a função de alvo (como acontece na frase em questão), meta ou de possuidor

Note-se, por fim, que certos verbos permitem que o mesmo constituinte se realize ora como complemento indireto ora como complemento oblíquo. É o que se verifica nas frase...

Pergunta:

Trata-se de uma temática gramatical difícil de entender e mais complicada, ainda, de explicar aos nossos alunos. Já consultei manuais escolares, gramáticas, o Ciberdúvidas e facilmente se encontram contradições nas explicações/exemplos apresentados. Gostaria, se possível, que, com exemplos, clarificassem a diferença entre estes dois aspetos e deixo, para isso, algumas questões:

(1) «O João correu durante uma semana.» (in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa)

A frase anterior aparece como exemplo de valor iterativo. Não será antes perfetivo?

Numa gramática encontro que o valor habitual «refere uma situação recorrente num intervalo de tempo ilimitado» e apresenta o seguinte exemplo:

«É costume visitar o meu primo duas vezes por semana.»

Não haverá, nesta frase, limitação temporal com a utilização da expressão temporal «duas vezes por semana»?

Finalmente, no manual que utilizo, nos elementos linguísticos apresentados para os dois valores surge a expressão «todos os dias».

Desde já, muito obrigado. Agradeço os esclarecimentos possíveis.

Resposta:

Antes de mais, importa clarificar que falar de aspetualidade implica convocar uma noção temporal que indica a duração de uma situação ou as suas fases. Por outro lado, é importante também reiterar que a identificação do valor aspetual de uma situação é uma tarefa complexa por envolver muitas variáveis. Como recorda Campos, «o valor aspectual de uma situação só pode ser estabelecido pela integração progressiva de todos os constituintes que participam na sua definição, a saber, verbo lexical, predicado (SV), sujeito, tempo verbal, adverbial temporal-aspectual, contexto discursivo.»1 A falta de algum destes elementos pode comprometer ou dificultar a interpretação do valor aspetual veiculado.

A questão da diferença entre o valor habitual e o iterativo está relacionada com a noção semântica de duração. A duração opõe-se à pontualidade e está relacionada com a expressão do tempo de desenvolvimento de uma situação. A pontualidade, por seu turno, descreve situações que não têm duração interna, ou seja, que entre o início e o términus têm apenas um lapso temporal.

A duração pode ser descrita como contínua (sem interrupção no seu tempo de desenvolvimento) ou descontínua (com interrupção no seu tempo de desenvolvimento). Esta última perspetiva contribui para a criação da ideia de repetição (a descrição é de um conjunto de situações). É no âmbito do padrão de repetição de uma situação que se enquadram os valores aspetuais habitual e iterativo. Assim,

(i) habitual descreve uma situação que «representa um padrão de repetição da situação suficientemente relevante a ponto de poder ser considerado como uma propriedade característica da entidade representada pelo sujeito gramatical»2; trata-se de uma repetição descrita como ilimitada:

(1) «O João escreve.» (= O João é escritor.)

(ii) o ite...