Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na seguinte frase:

«Quando o autor da sucessão tenha sido o participante, pode ser exigido pelo cônjuge sobrevivo ou demais herdeiros legitimários, independentemente do regime de bens do casal, o reembolso da totalidade do valor do plano de poupança, salvo quando solução diversa resultar de testamento ou cláusula beneficiária a favor de terceiro, e sem prejuízo da intangibilidade da legítima.»

a frase «salvo quando solução diversa resultar de testamento ou cláusula beneficiária a favor de terceiro» é uma oração sintaticamente independente, visto que termina com uma vírgula e se segue um e na frase seguinte?

A função de uma vírgula antes de um e é separar uma oração principal de uma oração coordenada?

Resposta:

Não podemos considerar que o constituinte «salvo quando solução diversa resultar de testamento ou cláusula beneficiária a favor de terceiro» seja uma unidade independente, pelas razões que passaremos a expor.

A palavra salvo, do ponto de vista da sua integração numa classe de palavras, tem uma classificação instável. A visão mais tradicional integra-a nas preposições. Propostas mais recentes propõem a sua classificação como advérbio de exclusão1 2. Do ponto de vista semântico, salvo introduz um constituinte que apresenta uma situação que é excluída da situação descrita no constituinte anterior.

Salvo é um conector que pode introduzir sintagmas nominais (1), orações infinitivas (2) e sintagmas preposicionais (3):

(1) «Todos os alunos já chegaram, salvo o João.»

(2) «Faz todos os serviços, salvo lavar a louça.»

(3) «Falei com todos os alunos salvo com a Maria»

Em todas estas frases observamos que o constituinte introduzido por salvo está dependente do constituinte anterior que expressa a situação geral, mantendo uma certa relação de subordinação.

Assim, se atentarmos, agora, na frase apresentada pelo consulente, verificamos que, em termos semânticos, o segmento «Quando o autor da sucessão tenha sido o participante, pode ser exigido pelo cônjuge sobrevivo ou demais herdeiros legitimários, independentemente do regime de bens do casal, o reembolso da totalidade do valor do plano de poupança» exprime a situação de referência, ou seja, a situação que aplica universalmente, estando verificadas as condições enunciadas. Por seu turno, o constituinte «salvo quando solução diversa resultar ...

Pergunta:

Na frase «De manhã, fomos transportados em caleche e visitámos o Taj Mahal» (Público, 21 de julho de 2012), o constituinte «em caleche» desempenha a função sintática de complemento oblíquo?

Resposta:

O constituinte «em caleche» desempenha na frase apresentada a função de complemento oblíquo.

A questão colocada pela consulente convoca a distinção entre complemento oblíquo e modificador do grupo verbal. Um dos testes que poderá ser utilizado para, neste contexto, identificar a função do constituinte é a construção pseudoclivada. Esta assenta na estrutura «O que o SUJEITO fez foi SINTAGMA VERBAL», como se observa em (1), frase adaptada, e (1a):

(1) «Nós fomos transportados em caleche.»

(1a) «O que nós fizemos foi ser transportados em caleche.»

Esta construção mostra que «ser transportados em caleche» constitui o sintagma verbal, mas é possível focalizar apenas o verbo e os seus complementos, colocando o modificador antes de «foi». Observe-se a manipulação da frase (2/2a):

(2) «O João cantou esta música em Lisboa.»

(2a) «O que o João fez em Lisboa foi cantar esta música.»

O facto de o constituinte «em Lisboa» poder ser colocado antes de «foi» mostra que se trata de um modificador, que pode, portanto, ser afastado do verbo.

Se aplicarmos o mesmo teste à frase em análise, verificamos que gera uma construção inaceitável:

(1b) «*O que nós fizemos em caleche foi ser transportados.»

O resultado da construção pseudoclivada aponta para o facto de o constituinte «em caleche» ter a função sintática de complemento oblíquo, estando o verbo transportar a ser usado como um verbo principal transitivo direto e indireto.

Disponha sempre!

...

Pergunta:

Se possível, gostaria de solicitar as seguintes informações:

1) Como dividir e classificar as orações constantes do período

«Enquanto contava histórias, a mulher, cercada de crianças inquietas, recordava-se da infância vivida na fazenda, por onde corria livremente, tocando o gado, alimentando a criação e plantando florezinhas no jardim para ocupar o tempo que parecia não ter fim.»

2) Já ouvi as designações de oração matriz, base ou nuclear para a chamada de principal, no período composto por subordinação. Essas designações são empregadas por quais estudiosos e em quais obras?

Agradeço antecipadamente por qualquer esclarecimento!

Resposta:

A frase apresentada inclui as seguintes orações:

  • «Enquanto contava histórias» - oração subordinada adverbial temporal;
  • «a mulher recordava-se da infância vivida na fazenda» - oração subordinante;
  • «cercada de crianças inquietas» - oração subordinada (não finita) participial;
  • «vivida na fazenda»1 - oração subordinada (não finita) participial;
  • «por onde corria livremente» - oração subordinada adjetiva relativa explicativa;
  • «tocando o gado» - oração subordinada (não finita) participial;
  • «alimentando a criação» - oração subordinada (não finita) participial e coordenada assindética da oração anterior
  • «e plantando florezinhas no jardim» - oração subordinada (não finita) participial e coordenada copulativa da anterior;
  • «para ocupar o tempo que parecia não ter fim» - oração subordinada adverbial final;
  • «que parecia não ter fim»2 - oração subordinada adjetiva relativa restritiva.  

 No que respeita às designações dadas à chamada oração subordinante, importa referir que, normalmente, são expressões sinónimas. As diferenças de designação ficam a dever-se, normalmente, ao quadro teórico a que pertence a análise desenvolvida. Entre os termos referidos pela consulente, foi possível identificar o uso da expressão «frase matriz» por João Andrade Peres e Telmo Móia, em Áreas Críticas da Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Caminho, 1995, p. 24): «[...] as orações subordinadas são parte integrante da frase total, onde parecem "encaixadas". Recorrendo a terminologia também corrente, usaremos a designação de frase matriz para as frases tomadas na sua totalidade [...].» (ver esta

Pergunta:

Eis que tenho de fazer uma indagação... Tal pergunta é relativa ao livro O Alienista, escrito por Machado de Assis.

Não depreendi o sentido da expressão «...não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra...». Podem me elucidar esta frase?

No vocábulo, «alcançar dele» e, do mesmo modo, a conjugação do verbo «ficasse» (modo subjuntivo), não compreendi o porquê do emprego...

Que dizem?

Obrigado.

Resposta:

O excerto apresentado integra a seguinte frase: «Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.» (Machado de Assis, O Alienista)

Nesta frase, o verbo alcançar está a ser usado como verbo transitivo direto e indireto com o sentido de «ter êxito nos esforços envidados para a conquista de (objeto ou objetivo)» (Dicionário Houaiss).

Assim, o narrador pretende afirmar que o rei envidou esforços para que ele [o médico] ficasse em Coimbra ou em Lisboa. Contudo, não foi bem-sucedido.

O recurso ao modo conjuntivo na forma ficasse está relacionado com a expressão de uma situação não factual, mas hipotética. 

Disponha sempre!

Revanche e Desforra
Duas palavras em conflito

O recente encontro futebolístico entre as seleções francesa e portuguesa trouxe ao espaço da comunicação social as palavras revanchedesforra. Se de uma segunda oportunidade se trata, desforra deveria ter sido o termo adotado, todavia, foi de revanche que muito se falou. Este é o motivo da crónica da professora Carla Marques, emitida no programa Páginas de Português, na Antena 2, do dia 18 de outubro de 2020.