Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na expressão «este ano», o demonstrativo este, habitualmente considerado deítico espacial, poderá ser considerado deítico temporal?

Resposta:

Na expressão em causa, o grupo nominal «este ano» poderá funcionar como um sintagma com função deítica temporal. É o que se verifica numa frase como (1), na qual o grupo nominal «este ano» aponta para o intervalo de um ano no qual se insere o momento de fala, valor que é assegurado pelo determinante este, que, assinalando proximidade, marca a sobreposição temporal entre o momento de fala e o intervalo temporal de 365 dias:

(1) «– Este ano ainda não fui à praia.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Agradecendo antecipadamente a vossa resposta, pergunto se todos os elementos que recuperam anafórica ou cataforicamente um referente podem ser considerados deíticos textuais.

Resposta:

Em termos gerais, no plano da deixis textual, os elementos que dependem referencialmente de outros podem ser considerados deíticos textuais.

Sempre que o conteúdo referencial de uma expressão depende do de outra expressão que tem um conteúdo referencial próprio, estamos perante um caso de referência textual. De forma global, as relações referenciais estabelecem-se entre uma expressão nominal plena, que tem um significado independente, e uma palavra que é referencialmente dependente. Esta relação leva que a expressão nominal plena funcione como antecedente, falando-se, então, de uma relação anafórica. Se a expressão referencial plena surgir depois da expressão dependente, falar-se-á de relação catafórica.

Existem, no entanto, casos específicos que terão de ser analisados de forma particular, que estão relacionados com as relações de referência, o seu tipo e com as classes que podem estabelecer essas mesmas relações, pelo que a questão colocada poderá ter de ser reequacionada em situações específicas1.

Disponha sempre!

 

1. Para maior aprofundamento desta questão, sugerimos, por exemplo, a leitura do Capítulo "Dependências Referenciais" de Maria Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2177-2227.

Pergunta:

«É uma obra para se ler, ver e ouvir.» = «É uma obra para ser lida, vista e ouvida.»

As frases acima (sinónimas) parecem ser gramaticais, mesmo sem a repetição do «se» apassivante, na primeira, e de «para ser», na segunda.

Já nos exemplos abaixo, a primeira frase parece ficar agramatical sem o «se» (complemento direto) do verbo «tornar-se», enquanto a frase equivalente é claramente agramatical pela mesma razão.

«Foi um jogador que se afirmou e tornou um craque.» = «O jogador afirmou-se e tornou um craque.»

Em que casos pode evitar-se a repetição do clítico se numa sequência/enumeração verbal em próclise?

Obrigado.

Resposta:

A omissão do clítico se pode acontecer em contextos de coordenação de orações que incluam os clíticos em próclise, ou seja, antes do verbo.

Antes de mais, é importante esclarecer que entre o primeiro grupo de frases e o segundo não se pode estabelecer um verdadeiro paralelismo porque estamos perante realidades gramaticais muito distintas.

A equivalência entre as frases (1) e (2) resulta do facto de ambas incluírem orações passivas (destacadas a negrito), resultantes ora da ação da partícula apassivante se, que constrói uma passiva sintética, ora da construção passiva mais tradicional

(1) «É uma obra para se ler, (se) ver e (se) ouvir

(2) «É uma obra para ser lida, (ser) vista e (ser) ouvida

Note-se ainda que o que se omite na frase (2) é o verbo auxiliar, que se assinala entre parênteses. Esta construção pode ter lugar em estruturas coordenadas.

No segundo grupo de frases não estamos perante frases passivas. A partícula se que aí se utiliza é parte integrante dos verbos pronominais afirmar-se e tornar-se.

No que diz respeito ao segundo conjunto de frases, aqui identificadas como (3) e (4), a diferença identificada está relacionada com o facto de o pronome clítico se aparecer em posição de próclise, ou seja, antes do verbo, ou em, posição de ênclise, ou seja, depois do verbo:

<i>Contração</i>, <i>retração</i> e <i>contenção</i>
Três palavras emergentes da crise económica

No seu discurso na Assembleia da República no âmbito da discussão do Orçamento de Estado, o ministro do Estado e da Economia português, Pedro Siza Vieira, usou indistintamente as palavras contração, retração e contenção. É a revisão dos significados destes termos e aquilo que os distingue que motiva a reflexão da professora Carla Marques

 

Pergunta:

Fui surpreendido com a seguinte análise sintática:

Na frase «Amarraram uma rede aos troncos», o constituinte «aos troncos» é substituível por lhes e classificado de complemento indireto.

Fico na dúvida se não é complemento oblíquo.

Podiam elucidar-me sobre esta classificação?

Obrigado pelo vosso trabalho.

Resposta:

Na frase em questão, o constituinte «aos troncos» desempenha a função sintática de complemento indireto.

A função de complemento indireto identifica-se pela possibilidade de substituição do constituinte pelo pronome pessoal na forma dativa -lhe(s), o que se verifica neste caso:

(1) «Amarraram-lhes uma rede.»

O constituinte com função de complemento indireto permite também o redobro do clítico, como se observa na manipulação da frase (2):

(2) «Eu dei uma prenda à Joana.» = «Eu dei-lhe uma prenda a ela

O mesmo processo pode ser aplicado à frase em análise:

(3) «Amarraram-lhes uma rede a eles.»

Alguma dúvida na identificação da função deste constituinte pode advir do facto de ele ter uma natureza [-Hum] (sendo que tipicamente o complemento indireto tem uma natureza [+Hum]) e de não desempenhar a função semântica de destinatário. Não obstante, é possível identificar constituintes que, tendo a função de complemento indireto, são [-Hum], como acontece em (4):

(4) «Eles fizeram uma enorme limpeza à casa1

É possível também o complemento indireto ter a função de alvo (como acontece na frase em questão), meta ou de possuidor

Note-se, por fim, que certos verbos permitem que o mesmo constituinte se realize ora como complemento indireto ora como complemento oblíquo. É o que se verifica nas frase...