Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
133K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«...O temporal não há meio de parar...»

A frase é retirada de uma ficção.

O que quero saber é que neste contexto «o temporal» funciona como o sujeito ou um objeto anteposto?

Resposta:

O constituinte «o temporal» desempenha a função sintática de sujeito do verbo parar.

A frase é composta por uma oração subordinante, «não há meio de», e uma oração subordinada, «parar o temporal». Neste caso, o verbo haver está a ser usado como verbo impessoal transitivo, ou seja, trata-se de um verbo que não seleciona sujeito mas seleciona complemento. Com este uso, o verbo surge sempre na 3.ª pessoa do singular. Nesta frase em particular, a oração subordinante tem o significado de “não existir maneira de resolver uma dada situação”.

Será no interior da oração subordinada que teremos de identificar a função do sintagma nominal «o temporal». Assim, o facto de a flexão no plural deste sintagma levar o verbo a flexionar por um fenómeno de concordância leva-nos a concluir que o sintagma em questão desempenha a função de sujeito:

(1) «Não há meio de os temporais pararem.»

O mesmo é confirmado pela possibilidade de substituição do sintagma «o temporal» pelo pronome pessoa ele:

(2) «Não há meio de ele parar.»

Disponha sempre!

Finados e cemitério
As palavras do Dia dos Fiéis Defuntos

Em ano de pandemia, a proibição, em Portugal, de circulação entre concelhos leva a que muitas famílias não possam realizar a tradicional visita aos cemitérios em Dia de Finados. É esta a realidade que motiva a seleção das palavras finadoscemitério para o apontamento da  professora Carla Marques, emitido no programa Páginas de Português, na Antena 2, do dia 1 de novembro de 2020.

Pergunta:

Na expressão «este ano», o demonstrativo este, habitualmente considerado deítico espacial, poderá ser considerado deítico temporal?

Resposta:

Na expressão em causa, o grupo nominal «este ano» poderá funcionar como um sintagma com função deítica temporal. É o que se verifica numa frase como (1), na qual o grupo nominal «este ano» aponta para o intervalo de um ano no qual se insere o momento de fala, valor que é assegurado pelo determinante este, que, assinalando proximidade, marca a sobreposição temporal entre o momento de fala e o intervalo temporal de 365 dias:

(1) «– Este ano ainda não fui à praia.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Agradecendo antecipadamente a vossa resposta, pergunto se todos os elementos que recuperam anafórica ou cataforicamente um referente podem ser considerados deíticos textuais.

Resposta:

Em termos gerais, no plano da deixis textual, os elementos que dependem referencialmente de outros podem ser considerados deíticos textuais.

Sempre que o conteúdo referencial de uma expressão depende do de outra expressão que tem um conteúdo referencial próprio, estamos perante um caso de referência textual. De forma global, as relações referenciais estabelecem-se entre uma expressão nominal plena, que tem um significado independente, e uma palavra que é referencialmente dependente. Esta relação leva que a expressão nominal plena funcione como antecedente, falando-se, então, de uma relação anafórica. Se a expressão referencial plena surgir depois da expressão dependente, falar-se-á de relação catafórica.

Existem, no entanto, casos específicos que terão de ser analisados de forma particular, que estão relacionados com as relações de referência, o seu tipo e com as classes que podem estabelecer essas mesmas relações, pelo que a questão colocada poderá ter de ser reequacionada em situações específicas1.

Disponha sempre!

 

1. Para maior aprofundamento desta questão, sugerimos, por exemplo, a leitura do Capítulo "Dependências Referenciais" de Maria Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2177-2227.

Pergunta:

«É uma obra para se ler, ver e ouvir.» = «É uma obra para ser lida, vista e ouvida.»

As frases acima (sinónimas) parecem ser gramaticais, mesmo sem a repetição do «se» apassivante, na primeira, e de «para ser», na segunda.

Já nos exemplos abaixo, a primeira frase parece ficar agramatical sem o «se» (complemento direto) do verbo «tornar-se», enquanto a frase equivalente é claramente agramatical pela mesma razão.

«Foi um jogador que se afirmou e tornou um craque.» = «O jogador afirmou-se e tornou um craque.»

Em que casos pode evitar-se a repetição do clítico se numa sequência/enumeração verbal em próclise?

Obrigado.

Resposta:

A omissão do clítico se pode acontecer em contextos de coordenação de orações que incluam os clíticos em próclise, ou seja, antes do verbo.

Antes de mais, é importante esclarecer que entre o primeiro grupo de frases e o segundo não se pode estabelecer um verdadeiro paralelismo porque estamos perante realidades gramaticais muito distintas.

A equivalência entre as frases (1) e (2) resulta do facto de ambas incluírem orações passivas (destacadas a negrito), resultantes ora da ação da partícula apassivante se, que constrói uma passiva sintética, ora da construção passiva mais tradicional

(1) «É uma obra para se ler, (se) ver e (se) ouvir

(2) «É uma obra para ser lida, (ser) vista e (ser) ouvida

Note-se ainda que o que se omite na frase (2) é o verbo auxiliar, que se assinala entre parênteses. Esta construção pode ter lugar em estruturas coordenadas.

No segundo grupo de frases não estamos perante frases passivas. A partícula se que aí se utiliza é parte integrante dos verbos pronominais afirmar-se e tornar-se.

No que diz respeito ao segundo conjunto de frases, aqui identificadas como (3) e (4), a diferença identificada está relacionada com o facto de o pronome clítico se aparecer em posição de próclise, ou seja, antes do verbo, ou em, posição de ênclise, ou seja, depois do verbo: