Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Como classificar a oração iniciada por que em «É por isso que não se pode imitar»?

Obrigada.

Resposta:

 

O enunciado apresentado é uma frase clivada ou de foco, a qual é utilizada para colocar em relevo determinada informação, como acontece em (1), onde se coloca em destaque o constituinte «o João»:

(1) «Foi o João que chegou.»

Esta frase equivale a (2) que não apresenta clivagem de nenhum dos seus constituintes:

(2) «O João chegou.»

A clivagem é feita na frase através de estruturas como «verbo ser + que» ou «verbo ser + isso/aquilo + que».

No caso da frase apresentada pela consulente, o constituinte posto em destaque é aquele que condensa a razão da asserção produzida: «por isso». A organização não marcada desta frase seria:

(3) «Não se pode imitar por isso.»

Refira-se, ainda, que a frase apresentada é composta por duas orações, mas a oração introduzida por que não pode ser considerada uma relativa canónica, pois que é um complementador e não um verdadeiro pronome relativo (como se explica aqui), pelo que a oração introduzida por que poderá ser referida simplesmente como oração subordinada. 

Disponha sempre!

Pergunta:

Está correto escrever «arreigado a»?

Agradecido

Resposta:

Do ponto de vista da norma-padrão, o verbo arreigar rege a preposição em.

O verbo arreigar ou arraigar com o significado de «lançar, criar raízes, radicar-se» pode ter um uso intransitivo:

(1) «A flor arreigou-se.»

ou um uso transitivo direto e indireto:

(2) «A paz do local arreigou-o naquela cidade.»

De acordo com os Dicionário Houaiss ou o Dicionário Prático de Regência Verbal, de Celso Luft, o verbo arraigar rege a preposição em quando construído com complemento oblíquo. Esta mesma regência terá lugar se o verbo tiver um uso participial ou se for usado como adjetivo.

Refira-se, todavia, que se efetuarmos uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies, identificamos usos com a preposição a:

(3) «A família de Fitz, inglês, representa a aristocracia tradicional, conservadora e arreigada ao preconceito, alimentando- se da injustiça social.» (in Destante)

(4) «Para o crítico (1990), o livro de Mário de Andrade, “todo ele de segunda intenção”, trazendo palavras do próprio literato, estaria arraigado à ideologia rural da República Velha.» (in

Pergunta:

Na frase «quando lá estive, a praia parecia agradável», podemos considerar que «parecia» é um deítico temporal (a sugerir simultaneidade)?

Bem-hajam!

Resposta:

Na frase em questão, a forma verbal parecia não é um deítico temporal.

Quando denota estados temporários ou eventos, o pretérito imperfeito do indicativo não tem a capacidade de, por si só, localizar situações no passado relativamente ao tempo da enunciação. Nestas situações, o pretérito imperfeito necessita de um tempo de referência com o qual se vai relacionar, que pode ser expresso por orações temporais ou advérbios temporais, por exemplo1.

Assim, na frase apresentada, é na oração subordinada adverbial temporal que se encontram os elementos que estabelecem uma relação deítica, conseguida através do uso do pretérito perfeito do indicativo (em estive). Este deítico aponta para um momento anterior ao tempo da enunciação. A forma verbal parecia, por seu turno, cria uma relação de sobreposição com a oração temporal, expressando a duração da perceção («parecer agradável»).  

Disponha sempre!

 

1. Para mais informação, cf. Oliveira, in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 518-520.

Pergunta:

É correto escrever «tratar-se contra» nos exemplos seguintes (os dois primeiros copiados da Internet)?

«[...] aceita tratar-se contra a dependência do álcool»

«[...] o que a levou a procurar ajuda e a tratar-se contra o vício em drogas.»

«Certos animais tratam-se contra parasitas.»

Na última frase, se se escrevesse «livram-se de parasitas», seria mantido o mesmo significado?

Resposta:

Os dicionários de referência1 consultados e os dicionários de verbos2 não preveem o uso do verbo trata-se com a preposição contra, embora alguns usos aparentados possam levar a que esta seja considerada aceitável.

Com uso pronominal, o verbo tratar é apresentado como intransitivo:

(1) «Ele tratou-se.»

Com o sentido de “debelar (doença, enfermidade, indisposição)”, as construções apontadas apresentam o verbo tratar com um complemento direto, que indica a natureza do aspeto a cuidar:

(2) «Ele aceitou tratar a dependência contra o álcool.»

Encontramos também o verbo com a regência da preposição de:

(3) «Ele tratou da sua saúde.»

Não obstante, uma pesquisa efetuada no Corpus do Português, de Mark Davies, mostra-nos que atualmente se identificam inúmeros usos do verbo tratar com a preposição contra, com o sentido de “procurar curar de uma doença ou debelar aquilo que a provoca”3:

(4) «[…] não cansando a vendedeira de a praça com avisos sobre como as tratar contra o bichado e o oídio.» (Diário de Notícias, 18-07-02)

(5) «A forte rejeição gerada por uma grande parte de a população que está a ser tratada contra o ébola […]» (jm-madeira 18-11-10 PT)

De igual forma, a construção «tratamento contra» é também muito frequente, qual se encontra,...

Pergunta:

Gostaria de saber qual das seguintes frases está correta:

«Lembra-lhes para regarem as flores.»

«Lembra-os para regarem as flores.»

«Lembra aos teus amigos para regarem as flores.»

«Lembra os teus amigos para regarem as flores.»

Muito obrigada pelo vosso trabalho.

Resposta:

A primeira e a terceira frases estão corretas, estando as restantes incorretas.

O verbo lembrar pode assumir várias naturezas:

(i) verbo transitivo direto:

    (1) «Lembrei os tempos de infância.»

(ii) verbo transitivo direto e indireto, tendo como argumentos um complemento direito e um indireto:

    (2) «Lembrei a verdade ao João.»

(iii) verbo transitivo direto e indireto, tendo como argumentos um complemento direto e um oblíquo:

    (3) «Lembrei o João da verdade.»

Lembrar pode selecionar uma oração completiva com a função de complemento direto:

(4) «Lembra ao João que regue as flores.»

Não obstante, uma vez que o verbo rege a preposição de (como se observou em (3)), pode também selecionar uma oração completiva (finita ou não finita) com função de complemento oblíquo:

(5) «Lembrei o João de que regaria as flores.»

(6) «Lembra o João de regar as flores.»

Enquanto verbo diretivo, lembrar pode também ocorrer com para. Neste contexto, importa determinar qual a natureza de para, de modo a identificar a função sintática desempenhada pela oração completiva.

Uma regra básica para distinguir se para é uma preposição ou se é uma conjunção assenta na possibilidade de supressão. Veja-se o exemplo:

(7) «Ela lembrou para lhe regares as flores.»

...