Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
Cumplicidade e consonância
Duas palavras da atualidade política portuguesa... nada unívocas no seu uso

Em Portugal, as palavras cumplicidade e consonância têm sido usadas, por vezes de forma pouco clara, para caracterizar a relação entre o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa, o que motivou o apontamento da professora Carla Marques, que procura os significados destas palavras. 

Pergunta:

Ouvi o Sr. primeiro-ministro [de Portugal] dizer:

«O Governo veio apresentar ao Presidente da República a proposta de que seja declarado o Estado de Emergência com uma natureza ...»

Eu diria «...a proposta que seja declarado...»

Quando em dúvida faço a pergunta: «que proposta vai apresentar?» e não «de que proposta vai apresentar?»

Agradecia uma clarificação deste ponto.

Resposta:

A frase apresentada está correta, sendo a preposição de opcional.

Tal como os verbos, também os nomes (ou os adjetivos) podem ter como complemento um sintagma nominal ou uma oração completiva. Sempre que o complemento é um sintagma nominal, a preposição é obrigatória, como acontece em (1):

(1) «Ele apresentou uma proposta de lei.»

Quando o complemento é oracional, a preposição não é obrigatória, podendo ser omitida:

(2) «Eu tenho a garantia (de) que ele vai tratar da questão.»

O mesmo acontece na frase apresentada pelo consulente:

(3) «O Governo veio apresentar ao Presidente da República a proposta (de) que seja declarado o Estado de Emergência com uma natureza ...»

O teste apresentado pelo consulente não funciona porque o nome proposta não rege nenhuma preposição. Nestes casos, quando o nome não seleciona nenhum preposição, o seu complemento é introduzido, por defeito, pela preposição de1. É o que acontece, por exemplo, com o nome sensação na frase seguinte:

(4) «Ele teve a sensação de que ia começar a chover.»

Acresce, ainda, que em termos de correção a supressão da preposição, sobretudo em orações que restringem o significado do nome, tende a ser vista como um desvio à norma, pelo que, num registo cuidado, deve evitar-se a sua omissão2.

Disponha sempre!

 

1. Para maior aprofundamento da questão, cf. Pilar Barbosa in Raposo et al., Gramática do Português.

Pergunta:

Quando posso usar a contração pelos e quando é obrigatório usar «por os»?

Obrigada

Resposta:

De uma forma geral, quando se dá o encontro entre a preposição e o artigo definido, a contração das duas palavras tem lugar:

(1) «Eu vou pelo caminho das rosas.»

Habitualmente, as preposições que contraem são a, de, em e por.

Há, todavia, circunstâncias que podem levar à inexistência de contração. Tal acontece quando a preposição não integra a oração subordinada não finita que introduz:

(2) «Ele ficou zangado por [o João ir pelo caminho das rosas].»

(2a) «*Ele ficou zangado pelo João ir pelo caminho das rosas.»

Nesta frase, a oração não finita não inclui a preposição por, pelo que não há lugar a contração com o determinante o, o que fica patente na  agramaticalidade de (2a).

Com títulos de obras que comecem por determinante ou pronome pessoal, a contração, embora possa ter lugar, costuma ser evitada para não os alterar. A ter lugar, pode usar-se um apóstrofo para demarcar a fronteira entre a preposição e o determinante:

(3) «Ele perguntou por Os Lusíadas.»

(3a) »Ele perguntou pel’Os Lusíadas.»

Disponha sempre!

 

* assinala a agramaticalidade da frase.

Pergunta:

Na frase «Ele acusa-a de, por estar bem de saúde, se estar ralando para o que os outros sofrem...», a expressão «para o que os outros sofrem» desempenha a função sintática de complemento oblíquo ou modificador?

Obrigada.

Resposta:

O constituinte apresentado, retirado de uma frase de um artigo de Clara Ferreira Alves1, desempenha a função sintática de complemento oblíquo.

Na frase apresentada, o verbo ralar é usado pronominalmente com o sentido de «não dar importância a». Com este sentido o verbo seleciona um complemento introduzido pelas preposições por ou para.

De modo a confirmar a função sintática desempenhada pelo constituinte, podemos recorrer à construção pseudoclivada, que assenta na estrutura «O que o SUJEITO fez foi SINTAGMA VERBAL». Esta construção não permite que os complementos do verbo surjam antes da forma foi. Apenas os modificadores do grupo verbal poderão ocupar esta posição. Simplificamos a frase para facilitar a análise:

(1) «Ela estava-se ralando para o que os outros sofrem.»

(1a) «O que Ela fez foi estar-se ralando para o que os outros sofrem.»

(1b) «*O que Ela fez para que os outros sofrem foi estar-se ralando.»

A inaceitabilidade da frase (1b) mostra que o constituinte «para o que os outros sofrem» não pode ser afastado do verbo, pelo que desempenha a função de complemento oblíquo.

Disponha sempre!

 

*assinala a inaceitabilidade da frase.

1. Clara Ferreira Alves, «Todas as cartas de amor são ridículas e outras nem chegam a sê-lo», in

Pergunta:

Sobre a adequação (semântica) inerente à expressão "golpe de Estado", não me parece aceitável dizer-se o seguinte:

«Estava a passar na rua e VI um golpe de Estado.?

Do ponto de vista semântico, perguntava-vos se podemos aceitar a frase ou se ela contraria o princípio da coerência.

Obrigado.

Resposta:

A frase apresentada é aceitável, embora possa ser aperfeiçoada no sentido de traduzir melhor a realidade observada.

Poderemos analisar a frase à luz da aspetualidade, no âmbito da semântica temporal. Neste âmbito, o verbo ver é usado com o valor de «assistir, presenciar», o que é compatível com a descrição de uma situação durativa, que, por seu turno, é também compatível com a realidade descrita pelo sintagma nominal «golpe de Estado».

Não obstante, considerando que a expressão «golpe de Estado» corresponde a «tomada inesperada do poder governamental pela força e sem participação do povo» (Dicionário Houaiss), não é previsível que toda a ação desenvolvida possa ser vista de uma rua por onde se passa. Assim, o mais natural é que o locutor tenha assistido a um intervalo de tempo compreendido no intervalo de tempo mais alargado que corresponde à situação «golpe de Estado».

Desta forma, a frase ficaria mais clara se esse intervalo de tempo fosse assinalada, como, por exemplo, em (1):

(1) « Estava a passar na rua e vi o início de um golpe de Estado.»

Disponha sempre!