Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
<i>Contração</i>, <i>retração</i> e <i>contenção</i>
Três palavras emergentes da crise económica

No seu discurso na Assembleia da República no âmbito da discussão do Orçamento de Estado, o ministro do Estado e da Economia português, Pedro Siza Vieira, usou indistintamente as palavras contração, retração e contenção. É a revisão dos significados destes termos e aquilo que os distingue que motiva a reflexão da professora Carla Marques

 

Pergunta:

Fui surpreendido com a seguinte análise sintática:

Na frase «Amarraram uma rede aos troncos», o constituinte «aos troncos» é substituível por lhes e classificado de complemento indireto.

Fico na dúvida se não é complemento oblíquo.

Podiam elucidar-me sobre esta classificação?

Obrigado pelo vosso trabalho.

Resposta:

Na frase em questão, o constituinte «aos troncos» desempenha a função sintática de complemento indireto.

A função de complemento indireto identifica-se pela possibilidade de substituição do constituinte pelo pronome pessoal na forma dativa -lhe(s), o que se verifica neste caso:

(1) «Amarraram-lhes uma rede.»

O constituinte com função de complemento indireto permite também o redobro do clítico, como se observa na manipulação da frase (2):

(2) «Eu dei uma prenda à Joana.» = «Eu dei-lhe uma prenda a ela

O mesmo processo pode ser aplicado à frase em análise:

(3) «Amarraram-lhes uma rede a eles.»

Alguma dúvida na identificação da função deste constituinte pode advir do facto de ele ter uma natureza [-Hum] (sendo que tipicamente o complemento indireto tem uma natureza [+Hum]) e de não desempenhar a função semântica de destinatário. Não obstante, é possível identificar constituintes que, tendo a função de complemento indireto, são [-Hum], como acontece em (4):

(4) «Eles fizeram uma enorme limpeza à casa1

É possível também o complemento indireto ter a função de alvo (como acontece na frase em questão), meta ou de possuidor

Note-se, por fim, que certos verbos permitem que o mesmo constituinte se realize ora como complemento indireto ora como complemento oblíquo. É o que se verifica nas frase...

Pergunta:

Trata-se de uma temática gramatical difícil de entender e mais complicada, ainda, de explicar aos nossos alunos. Já consultei manuais escolares, gramáticas, o Ciberdúvidas e facilmente se encontram contradições nas explicações/exemplos apresentados. Gostaria, se possível, que, com exemplos, clarificassem a diferença entre estes dois aspetos e deixo, para isso, algumas questões:

(1) «O João correu durante uma semana.» (in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa)

A frase anterior aparece como exemplo de valor iterativo. Não será antes perfetivo?

Numa gramática encontro que o valor habitual «refere uma situação recorrente num intervalo de tempo ilimitado» e apresenta o seguinte exemplo:

«É costume visitar o meu primo duas vezes por semana.»

Não haverá, nesta frase, limitação temporal com a utilização da expressão temporal «duas vezes por semana»?

Finalmente, no manual que utilizo, nos elementos linguísticos apresentados para os dois valores surge a expressão «todos os dias».

Desde já, muito obrigado. Agradeço os esclarecimentos possíveis.

Resposta:

Antes de mais, importa clarificar que falar de aspetualidade implica convocar uma noção temporal que indica a duração de uma situação ou as suas fases. Por outro lado, é importante também reiterar que a identificação do valor aspetual de uma situação é uma tarefa complexa por envolver muitas variáveis. Como recorda Campos, «o valor aspectual de uma situação só pode ser estabelecido pela integração progressiva de todos os constituintes que participam na sua definição, a saber, verbo lexical, predicado (SV), sujeito, tempo verbal, adverbial temporal-aspectual, contexto discursivo.»1 A falta de algum destes elementos pode comprometer ou dificultar a interpretação do valor aspetual veiculado.

A questão da diferença entre o valor habitual e o iterativo está relacionada com a noção semântica de duração. A duração opõe-se à pontualidade e está relacionada com a expressão do tempo de desenvolvimento de uma situação. A pontualidade, por seu turno, descreve situações que não têm duração interna, ou seja, que entre o início e o términus têm apenas um lapso temporal.

A duração pode ser descrita como contínua (sem interrupção no seu tempo de desenvolvimento) ou descontínua (com interrupção no seu tempo de desenvolvimento). Esta última perspetiva contribui para a criação da ideia de repetição (a descrição é de um conjunto de situações). É no âmbito do padrão de repetição de uma situação que se enquadram os valores aspetuais habitual e iterativo. Assim,

(i) habitual descreve uma situação que «representa um padrão de repetição da situação suficientemente relevante a ponto de poder ser considerado como uma propriedade característica da entidade representada pelo sujeito gramatical»2; trata-se de uma repetição descrita como ilimitada:

(1) «O João escreve.» (= O João é escritor.)

(ii) o ite...

Pergunta:

Na seguinte frase:

«Quando o autor da sucessão tenha sido o participante, pode ser exigido pelo cônjuge sobrevivo ou demais herdeiros legitimários, independentemente do regime de bens do casal, o reembolso da totalidade do valor do plano de poupança, salvo quando solução diversa resultar de testamento ou cláusula beneficiária a favor de terceiro, e sem prejuízo da intangibilidade da legítima.»

a frase «salvo quando solução diversa resultar de testamento ou cláusula beneficiária a favor de terceiro» é uma oração sintaticamente independente, visto que termina com uma vírgula e se segue um e na frase seguinte?

A função de uma vírgula antes de um e é separar uma oração principal de uma oração coordenada?

Resposta:

Não podemos considerar que o constituinte «salvo quando solução diversa resultar de testamento ou cláusula beneficiária a favor de terceiro» seja uma unidade independente, pelas razões que passaremos a expor.

A palavra salvo, do ponto de vista da sua integração numa classe de palavras, tem uma classificação instável. A visão mais tradicional integra-a nas preposições. Propostas mais recentes propõem a sua classificação como advérbio de exclusão1 2. Do ponto de vista semântico, salvo introduz um constituinte que apresenta uma situação que é excluída da situação descrita no constituinte anterior.

Salvo é um conector que pode introduzir sintagmas nominais (1), orações infinitivas (2) e sintagmas preposicionais (3):

(1) «Todos os alunos já chegaram, salvo o João.»

(2) «Faz todos os serviços, salvo lavar a louça.»

(3) «Falei com todos os alunos salvo com a Maria»

Em todas estas frases observamos que o constituinte introduzido por salvo está dependente do constituinte anterior que expressa a situação geral, mantendo uma certa relação de subordinação.

Assim, se atentarmos, agora, na frase apresentada pelo consulente, verificamos que, em termos semânticos, o segmento «Quando o autor da sucessão tenha sido o participante, pode ser exigido pelo cônjuge sobrevivo ou demais herdeiros legitimários, independentemente do regime de bens do casal, o reembolso da totalidade do valor do plano de poupança» exprime a situação de referência, ou seja, a situação que aplica universalmente, estando verificadas as condições enunciadas. Por seu turno, o constituinte «salvo quando solução diversa resultar ...

Pergunta:

Na frase «De manhã, fomos transportados em caleche e visitámos o Taj Mahal» (Público, 21 de julho de 2012), o constituinte «em caleche» desempenha a função sintática de complemento oblíquo?

Resposta:

O constituinte «em caleche» desempenha na frase apresentada a função de complemento oblíquo.

A questão colocada pela consulente convoca a distinção entre complemento oblíquo e modificador do grupo verbal. Um dos testes que poderá ser utilizado para, neste contexto, identificar a função do constituinte é a construção pseudoclivada. Esta assenta na estrutura «O que o SUJEITO fez foi SINTAGMA VERBAL», como se observa em (1), frase adaptada, e (1a):

(1) «Nós fomos transportados em caleche.»

(1a) «O que nós fizemos foi ser transportados em caleche.»

Esta construção mostra que «ser transportados em caleche» constitui o sintagma verbal, mas é possível focalizar apenas o verbo e os seus complementos, colocando o modificador antes de «foi». Observe-se a manipulação da frase (2/2a):

(2) «O João cantou esta música em Lisboa.»

(2a) «O que o João fez em Lisboa foi cantar esta música.»

O facto de o constituinte «em Lisboa» poder ser colocado antes de «foi» mostra que se trata de um modificador, que pode, portanto, ser afastado do verbo.

Se aplicarmos o mesmo teste à frase em análise, verificamos que gera uma construção inaceitável:

(1b) «*O que nós fizemos em caleche foi ser transportados.»

O resultado da construção pseudoclivada aponta para o facto de o constituinte «em caleche» ter a função sintática de complemento oblíquo, estando o verbo transportar a ser usado como um verbo principal transitivo direto e indireto.

Disponha sempre!

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