Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

No poema "A morte de Tapir" de Olavo Bilac, vejo os seguinte versos:

Quanta vez do inimigo o embate rechaçando
Por si só, foi seu peito uma muralha erguida,
Em que vinha bater e quebrar-se vencida
De uma tribo contrária a onda medonha e bruta!

Dúvida: a expressão «quanta vez» significa o mesmo que «quantas vezes»? Nunca a vi ser usada no singular. É possível isso? Qual é a interpretação correta?

Obrigado.

Resposta:

A expressão «quanta vez» é equivalente a «quantas vezes» e assinala a repetição de uma situação tomada na sua singularidade. A utilização desta expressão no singular não será tão frequente quanto a da expressão no plural. Não obstante, a partir de uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies, é possível assinalar o seu uso em obras literárias, associada a frases exclamativas:

(1) «Ah, quanta vez, na hora suave/ Em que me esqueço ,/ Vejo passar um voo de ave/ E me entristeço!» (Fernando PessoaArquivo Pessoa)

(2) «Quanta vez seus mestres dos mistérios sagrados sacerdotes, todos eles, da mais alta cultura e reconhecida virtude - lhe tinham ensinado a santa doutrina, os mandamentos supremos...!» (José Régio, Os avisos do Destino)

(3) «Ai, quanta vez então dentro em meu peito/ Vago terror penetra, como um raio» (Machado de Assis, Falenas)

Repare-se ainda que quanto/a pode surgir em outras expressões, também singulares:

(4) «Quanta felicidade!»

(5) «Quanto cansaço!»

Disponha sempre!

Pergunta:

Em «O leitor toma conhecimento apenas do que o detetive vê e ouve», «do que o detetive vê e ouve» é complemento nominal de conhecimento. O pronome relativo que é objeto direto, porque toma o lugar de «aquilo».

Mas se eu fosse analisá-lo dentro do complemento, poderia ainda usar a classificação de "objeto direto", ou há outra mais precisa?

Resposta:

A análise proposta pelo consulente está correta.

No interior do grupo nominal «conhecimento apenas do que o detetive vê e ouve», o pronome relativo que não desempenha nenhuma função sintática, pois mantém uma relação sintática com os verbos coordenados «vê e ouve» e não com conhecimento. A palavra que estabelece relação direta com este nome é a preposição de, que introduz o complemento de nome (nominal) que é argumento do nome.

Disponha sempre!

Pergunta:

Gostaria de saber se todas as frases seguintes estão corretas e, caso não estejam, qual a razão para isso.

Gostaria também de saber que diferenças de significado existem entre as diferentes frases, caso existam.

Por fim, gostaria que, se possível, apresentassem as regras gerais que determinam o uso destes três tempos verbais.

Muitíssimo obrigada por este maravilhoso serviço!

(1) Foi pena que os teus irmãos não pudessem vir ontem à festa. Foi pena que os teus irmãos não tenham podido vir ontem à festa. Foi pena que os teus irmãos não tivessem podido vir ontem à festa.

(2) Era possível que elas viessem ao ginásio. Era possível que elas tivessem vindo ao ginásio. * Era possível que elas tenham vindo ao ginásio.

*(Não está correta, mas gostaria de perceber a razão. Está relacionada com o uso do imperfeito do indicativo no início? Existe alguma regra geral que determine a impossibilidade de usar o pretérito perfeito composto do conjuntivo quando se usa o imperfeito do indicativo?).

(3) Por maiores que fossem os problemas, ele não desistiu. Por maiores que tenham sido os problemas, ele não desistiu. Por maiores que tivessem sido os problemas, ele não desistiu.

(4) Esperava que o teu irmão trouxesse a Joaninha. Esperava que o teu irmão tivesse trazido a Joaninha.

(5) Ele queria que tu fosses ao escritório dele ontem à tarde. Ele queria que tu tivesses ido ao escritório dele ontem à tarde.

(6) Mesmo que eles o vissem, nunca teriam podido falar com ele. Mesmo que eles o tivessem visto, nunca teriam podido falar com ele. Mesmo que eles o tenham visto, nunca teriam podido falar com ele.

(7) Foi pena que a Joana não viesse a nossa casa ontem. Foi pena que a Joana não tivesse podido vir a nossa casa ontem. Foi pena que a Joana não tenha vindo a nossa casa ontem.

(8) Talvez ele não tenha podido ir à reunião. Talvez ele não pudesse ir à reunião. Talvez ele não tivesse podido ir à reu...

Resposta:

Nas frases apresentadas pela consulente, há várias situações a considerar.

Vejamos em primeiro lugar as frases que incluem uma oração subordinada completiva. Nestes casos, o tempo verbal da oração subordinada depende do da oração subordinante. Assim, quando o verbo da oração subordinante se encontra no pretérito imperfeito ou no pretérito perfeito do indicativo, o verbo da oração subordinada surge no imperfeito do conjuntivo (no Brasil, subjuntivo), indicando que a situação descrita na oração subordinada se localiza num intervalo de tempo posterior ao da situação descrita na subordinante. É o que se verifica na seguinte frase (selecionada entre as que a consulente apresenta):

(1) «Esperava que o teu irmão trouxesse a Joaninha.»

(2) «Era possível que elas viessem ao ginásio.»

No entanto, esta mesma construção permite localizar a situação da subordinada num intervalo de tempo anterior ao da situação da subordinante, se introduzirmos na frase um advérbio de tempo, como acontece nas frases (3) a (5):

(3) «Foi pena que os teus irmãos não pudessem vir ontem à festa.»

(4) «Foi pena que a Joana não viesse a nossa casa ontem

(5) « Ele queria que tu fosses ao escritório dele ontem à tarde

O aparecimento do verbo da oração subordinada no pretérito perfeito composto fica dependente do verbo da subordinante, que terá de ocorrer no presente do indicativo. Nesta situação, o pretérito perfeito composto localiza a situação num tempo anterior ao do da subordinante. As frases (6) e (7) enquadram-se nesta descrição:

(6) «É pena que os teus irmãos não tenham podido vir (ontem) à festa.»

(7) «É pena que a Joana não tenha vindo a nossa casa (ontem).»

Cumplicidade e consonância
Duas palavras da atualidade política portuguesa... nada unívocas no seu uso

Em Portugal, as palavras cumplicidade e consonância têm sido usadas, por vezes de forma pouco clara, para caracterizar a relação entre o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa, o que motivou o apontamento da professora Carla Marques, que procura os significados destas palavras. 

Pergunta:

Ouvi o Sr. primeiro-ministro [de Portugal] dizer:

«O Governo veio apresentar ao Presidente da República a proposta de que seja declarado o Estado de Emergência com uma natureza ...»

Eu diria «...a proposta que seja declarado...»

Quando em dúvida faço a pergunta: «que proposta vai apresentar?» e não «de que proposta vai apresentar?»

Agradecia uma clarificação deste ponto.

Resposta:

A frase apresentada está correta, sendo a preposição de opcional.

Tal como os verbos, também os nomes (ou os adjetivos) podem ter como complemento um sintagma nominal ou uma oração completiva. Sempre que o complemento é um sintagma nominal, a preposição é obrigatória, como acontece em (1):

(1) «Ele apresentou uma proposta de lei.»

Quando o complemento é oracional, a preposição não é obrigatória, podendo ser omitida:

(2) «Eu tenho a garantia (de) que ele vai tratar da questão.»

O mesmo acontece na frase apresentada pelo consulente:

(3) «O Governo veio apresentar ao Presidente da República a proposta (de) que seja declarado o Estado de Emergência com uma natureza ...»

O teste apresentado pelo consulente não funciona porque o nome proposta não rege nenhuma preposição. Nestes casos, quando o nome não seleciona nenhum preposição, o seu complemento é introduzido, por defeito, pela preposição de1. É o que acontece, por exemplo, com o nome sensação na frase seguinte:

(4) «Ele teve a sensação de que ia começar a chover.»

Acresce, ainda, que em termos de correção a supressão da preposição, sobretudo em orações que restringem o significado do nome, tende a ser vista como um desvio à norma, pelo que, num registo cuidado, deve evitar-se a sua omissão2.

Disponha sempre!

 

1. Para maior aprofundamento da questão, cf. Pilar Barbosa in Raposo et al., Gramática do Português.