Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
Uma eminência iminente
Palavras parónimas traiçoeiras

No Diário de Notícias de 27 de janeiro anuncia-se que o relógio do apocalipse marca apenas 100 segundos para a meia-noite e refere-se, na abertura da notícia, que tal «simboliza a eminência de um cataclismo planetário», acusando mais um caso de confusão entre as palavras parónimas eminência iminência.

Pergunta:

No período a seguir, fiquei com uma dúvida atroz, «Todos foram à festa, inclusive eu.»

«Inclusive eu» será uma oração assindética com o verbo elidido? Se «inclusive eu» fosse parte do sujeito composto, deslocado, o verbo não deveria estar na 1.ª pessoa do plural? «Todos fomos a festa, inclusive eu.»

Nesse caso, o termo «inclusive eu» não será um pleonasmo de vício [de linguagem], visto que a desinência verbal já denotaria que o locutor também fora à festa? Portanto, minha escolha seriam duas orações, a segunda com o verbo elidido: «Todos foram à festa, inclusive eu (fui).»

Grato.

Resposta:

O constituinte «inclusive eu» é, na frase em análise, um aposto de todos. Em termos semânticos, poderemos considerar que a forma verbal fui foi elidida deste constituinte. A sua elipse ocorre porque se trata de material linguístico facilmente recuperável.

Como afirmam Brito e Raposo, um «uso dos apostos consiste em dar informação sobre os membros de um conjunto expresso por um sintagma nominal quantificado, quer através de uma especificação completa ou parcial dos seus membros, quer através da menção de subconjuntos extensionalmente mais restritos» (in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1112). Neste caso particular, o sintagma «inclusive eu» incide sobre todos, especificando uma parte desse conjunto (o “eu”), na qual se pretende colocar o foco informativo,acrescentando, eventualmente, ainda um valor que destaca a pouca probabilidade que existia de o eu pertencer ao grupo referido. 

Disponha sempre!

Pergunta:

A frase «o filme é divertido de assistir» é ambígua?

Resposta:

A frase é aceitável, tendo, sem outro contexto, um valor de afirmação de valor genérico, ou seja, que é válida para qualquer situação/pessoa.

Quando seleciona um complemento nominal, o adjetivo divertido rege habitualmente a preposição com:

(1) «Ele está divertido com este filme.»

Todavia, este adjetivo pode também selecionar como complemento uma oração infinitiva, como acontece na frase apresentada pelo consulente. Neste caso, o complemento do adjetivo pode ser introduzido pela preposição de, que não é propriamente regida pelo adjetivo, mas que funciona como introdutora do complemento. Esta possibilidade é referida por Pilar Barbosa: «Há adjetivos que não regem nenhuma preposição em particular. Nestes casos, é inserida a preposição de. Esta preposição tem a função puramente gramatical de estabelecer uma relação de subordinação entre o adjetivo e o seu complemento» (in Barbosa et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1876).

Relativamente aos adjetivos que exprimem emoções, acrescenta ainda Hernanz (apud Raposo e Raposo): «alguns adjetivos que exprimem emoções ou estados de espírito, como aborrecido, alegre, assustado, contente, envergonhado, triste e zangado, e que se usam frequentemente de modo intransitivo, podem também combinar-se com uma oração infinitiva, a qual pode ser introduzida por de ou por por» (in idem. Ibid., p. 1940).

De acordo com o que ficou dito, a frase é aceitável. Refira-se que é também possível construir a oração ...

Pergunta:

Na canção "Lisboa, menina e moça" de Carlos do Carmo, gostaria de saber o significado dos seguintes versos: «Na cambraia de um beijo» e «cidade a ponto luz bordada».

Agradeço desde já o vosso trabalho.

Resposta:

Ambos os versos têm um sentido metafórico, pois assentam numa «associação de semelhança implícita entre dois elementos», transpondo sentidos de uma palavra / expressão para outra (cf. E-dicionário de termos literários).

E o que acontece em «Na cambraia de um beijo», expressão que associa a suavidade e a delicadeza da cambraia ao beijo que se dá.

No caso do verso «Cidade a ponto luz bordada», associa-se a minúcia dos pontos de um bordado à diversidade de pontos de luz que compõem o todo que é a cidade, que parece ter sido construída / bordada com base nesses mesmos pontos de luz. É esta conceptualização da cidade que permite, logo no verso seguinte, transformá-la numa «Toalha à beira-mar estendida».

Disponha sempre!

Pergunta:

Quando não há verbo depois, usa-se, de acordo com a norma padrão portuguesa, o pronome ele ou si, neste caso: «o predomínio exercido sobre ele», ou «sobre si»?

Muito obrigado!

Resposta:

As duas opções estão corretas.

O pronome pessoal com a forma si usa-se como complemento de preposição tanto na 3.ª pessoa do singular (masculino ou feminino) como na 3.ª pessoa do plural (masculino ou feminino). De uma forma geral, a forma ele/ela/eles/elas pode ser usada nos mesmos contextos de complemento preposicional em que se usa o pronome si. Com efeito, para assinalar a reflexividade, tanto se pode usar a forma si como a forma ele, como se observa nos exemplos abaixo:

(1) «Ele fala de si (próprio).» / «Ele fala dele próprio.»

(2) «Ele faz o trabalho por si (próprio).» / «Ela faz o trabalho por ele próprio.»

(3) «Ele confessou que aquele autor exerce um predomínio sobre si.» / «Ele confessou que aquele autor exerce um predomínio sobre ele.»

Para o português de Portugal, leia-se também esta resposta.

Disponha sempre!