Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

No que concerne ao valor aspetual, surgiu-me uma questão.

Se considerarmos a frase «Ele leu um livro», estamos perante um evento durativo ou não durativo?

Neste âmbito, o segmento em apreço suscitou-me a seguinte pergunta: um ato perfetivo é necessariamente não durativo? Ou pode ser durativo?

Agradecido pela preciosa ajuda!

Resposta:

Na frase em apreço, está presente o valor durativo.

O valor durativo integra o aspeto gramatical de um verbo e descreve uma situação / evento que tem duração interna. Tem duração interna uma situação que não é pontual, ou seja, cuja concretização se estende no tempo. Em (1), temos um exemplo de uma situação pontual:

(1) «O João espirrou.»

Uma situação durativa é normalmente faseável, ou seja, pode ser perspetivada em diferentes fases:

(i) fase inicial

     (2) «Ele começou a ler um livro.»

(ii) fase de evolução da situação

     (3) «Ele está a ler um livro.»

(iii) fase de culminação da ação

    (4) «Ele acabou de ler um livro.»

(iv) fase do resultado final da situação

    (5) «Ele já terminou de ler o livro.»

Assim, o verbo ler é um evento durativo enquanto espirrar é pontual.

Esta explicação permite concluir que o valor perfetivo tanto se pode associar a um valor durativo como a um pontual.

Disponha sempre!

Pergunta:

Examine-se a seguinte frase:

«O sucesso financeiro envolve não só uma inteligência prática, senão uma alta capacidade de controle emocional.»

Pode-se dizer que a conjunção senão tem um valor aditivo? Poderia ser substituída por como?

Obrigado.

Resposta:

Senão surge na frase apresentada como um elemento de uma locução conjuncional coordenativa correlativa. Trata-se de um conector formado por vários elementos que estabelece entre os membros coordenados uma relação de interdependência, que envolve também uma noção de adição.

Neste tipo de construção senão é equivalente a «como também» ou a «mas também».

Disponha sempre!

 

N.A. (20/01/2021) – Relativamente a esta resposta, escreve-nos um consulente – Markus Dienel, Giessen, Alemanha – o seguinte: «Relativamente à pergunta do consulente Fernando Bueno, na vossa resposta com o título «'O uso correlativo de senão como conjuncção», do dia 15 de Janeiro de 2021: na frase que elle apresenta para análise, o «senão» devia sêr usado com «também», isto é: «senão também» ou "senão, também,» («também» entre vírgulas), assim como em «como também» ou «mas também»; pois o advérbio «só» exige isso. Assim, ficaria: «Successo financeiro exige NÃO SÓ intelligência, SENÃO TAMBÉM domínio próprio.» «Vencer exige NÃO SÓ intelligência, SENÃO, TAMBÉM, domínio próprio.» Se, porém, disser: «A victória NÃO vem do homem, SENÃO de Deus», então, aqui, sim, o «senão» não vem acompanhado de «também».»

Relativamente ao comentário feito, concordamos com o facto de a conjunção senão, com valor aditivo e sendo correlativa de «não só», poder ser acompanhada, em todas as situações, por também (que poderá surgir entre vírgulas). No entanto, como explica Napoleão Mendes de Almeida, o constituinte também pode ser omiti...

Parabéns, Ciberdúvidas!
24 anos pró-língua portuguesa em toda a sua diversidade geográfica

Um balanço sobre o serviço público, gratuito e universal, prestado pelo Ciberdúvidas da Língua portuguesa, no dia do seu  24.º aniversário do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, pela professora Carla Marques.

Pergunta:

Agradeço desde já a ajuda e peço desculpa pelo caráter tão vago da minha questão.

Não consigo distinguir o valor de probabilidade do valor de possibilidade. Qual é a diferença? Não consigo entender... E os casos facultados pelas gramáticas que consultei só me baralharam ...

Por exemplo, «talvez», em alguns casos, está associado a um valor e , noutros casos, a outro valor! Há algum "truque" para os distinguir? Como o faço? É que são tão mas tão similares que raramente consigo fazer a distinção.

Agradecido

Resposta:

A questão apresentada enquadra-se no tratamento dos valores da modalidade epistémica, que está relacionada com o grau de certeza / incerteza que o falante expressa relativamente ao conteúdo da sua frase. Esta pode ser associada a três valores: certeza, probabilidade e possibilidade. A distinção entre os valores de probabilidade e de possibilidade não é considerada em todas as gramáticas e, atualmente, não é tratada no ensino secundário, de acordo com o previsto no Dicionário Terminológico. Neste nível de ensino apenas se consideram os valores de certeza e de probabilidade.

Relativamente aos valores, a certeza está presente quando o falante apresenta como verdade o conteúdo da sua afirmação:

(1) «Estou certo que sei a matéria.»

O valor de probabilidade está presente quando o falante expressa a crença na probabilidade do que afirma, ou seja, o conteúdo da sua afirmação é apresentado como uma situação que pode ocorrer:

(2) «É provável que eu saiba a matéria toda.»

A probabilidade é, frequentemente, expressa através dos verbos poder ou dever:

(3) «O João pode ter lido o livro todo.»

(4) «O João deve ter lido o livro todo.»

O valor de possibilidade está presente quando o falante apresenta a situação como algo que pode acontecer, situação relativamente à qual tem, todavia, menos certeza. 

(5) «É possível que eu saiba toda a matéria.»

Pode ser expresso com o auxílio do advérbio talvez:

(6) «Talvez o João saiba toda a matéria.»

A...

Pergunta:

Minha consulta se prende às expressões expletivas do tipo «é que», «é onde», «é quando», das quais se diz que servem a dar ênfase a orações ou a termos de oração.

Observo, entretanto, que, a par da ênfase, tais expressões possam carrear um caráter de exclusividade. Se não, vejamos as seguintes frases:

«A prática da leitura gera conhecimento» (um dos fatores que geram).

«É a pratica da leitura que gera conhecimento» (exclusividade – somente a pratica da leitura, talvez por influência de uma estrutura tal como «Pode-se viajar, podem-se visitar museus ou conhecer pessoas, mas é a prática da leitura que gera conhecimento»).

«A sombra das montanhas de Minas conduz à reflexão» (também ela conduz).

«A sombra das montanhas de Minas é que conduz à reflexão» (somente ela conduz).

«Na praia de Copacabana é onde transitam belas mulheres» (é somente lá que transitam).

«Na praia de Copacabana transitam belas mulheres» (é também lá que transitam, aliás frase mais condizente com a realidade...).

Obs.: Quando de usa o advérbio mais ou o pronome indefinido mais, parece não haver alteração de sentido com o uso da expressão expletiva: «É na praia de Copacabana que transitam as mais belas mulheres»; «É a prática da leitura que gera mais conhecimento».

Gostaria de um exame a respeito, o qual desde já agradeço.

Resposta:

A proposta de interpretação dos valores semântico-pragmáticos revelam sensibilidade na análise das construções envolvidas. Pode, no entanto, ser aperfeiçoada com base em análises já existentes em torno da clivagem em português1.

As construções apresentadas pelo consulente são exemplos de processos de clivagem distintos, como

(i) Clivada canónica:

    (1) «É a pratica da leitura que gera conhecimento.»

(ii) Clivada é que:

     (2) «A sombra das montanhas de Minas é que conduz à reflexão.»

(iii) Pseudoclivada invertida:

     (3) «Na praia de Copacabana é onde transitam belas mulheres.»

Em termos semântico-pragmáticos, as construções clivadas é que (frase (2)) são tipicamente usadas para assinalar o contraste. Em (2), a intenção do locutor será a de indicar que é a sombra e não outro elemento que conduz à reflexão.

Por seu turno, as clivadas canónicas (1) e as pseudoclivadas (3) estão ao serviço da focalização de um constituinte da frase, que, em termos informacionais, ganha relevo com a construção. Não obstante, é também possível que estas construções marquem um foco contrastivo. Relativamente às frases (1) e (3), só a análise do contexto permitirá aferir com maior rigor a intenção que se associa à construção clivada.

Disponha sempre!

 

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