Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na seguinte frase:

«O aluno fez o trabalho corretamente»

como é que eu sei que «corretamente» é modificador e não complemento oblíquo, sendo que posso fazer o teste da pergunta «como...»?

O que distingue esta frase da seguinte:

«O João sentiu-se mal»

sendo que «mal» já é complemento oblíquo e não modificador.

Como distinguir?

Resposta:

Em termos gerais, o complemento oblíquo é uma função sintática exigida pelo verbo, que necessita desse complemento para completar a sua significação, ao passo que o modificador é uma função sintática que não é selecionada pelo verbo. Por essa razão, o complemento oblíquo não pode ser omitido da frase ao passo que o modificador pode ser eliminado. Veja-se a frase seguinte:

(1) «O João foi a Paris ontem.»

Nesta frase, o constituinte «a Paris» é pedido pelo verbo e não pode ser eliminado porque a frase ficaria agramatical. Por seu turno, o constituinte ontem pode ser retirado da frase sem comprometer a sua gramaticalidade, o que indica que tem a função de modificador do grupo verbal.

Vários testes podem ser utilizados para identificar o complemento oblíquo:

(i) Distinguir complemento oblíquo de complemento direto ou de complemento indireto

     O complemento oblíquo não pode ser substituído pelo pronome -o (o que indica que não tem a função de complemento direto)

     Não pode ser substituído pelo pronome -lhe (o que assinala que não tem a função de complemento indireto)

(ii) Distinguir complemento oblíquo de modificador do grupo verbal

    

Pergunta:

Qual destes termos é o mais correto para descrever a ideologia defendida por um libertário?

"Libertismo", "libertarismo" ou "libertarianismo"? Ou são as três corretas?

Obrigado.

Resposta:

Os termos mais corretos para referir a ideologia de um libertário serão libertarismo ou libertarianismo.

A palavra libertário, usada como adjetivo ou como substantivo, significa «que não admite restrições à liberdade individual, em matéria social, política e económica» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea).

As três palavras apresentadas pelo consulente, libertismo, libertarismo e libertarianismo, têm todas o conceito de liberdade na sua significação. Contudo, em termos mais específicos, referem duas perspetivas filosóficas com contornos distintos.

O libertismo é uma conceção filosófica que defende que algumas das ações do ser humano são livres, não estando causalmente determinadas. Considera, deste modo, que o ser humano é dotado de autodeterminação, pois a mente está acima da causalidade do mundo natural. O libertismo, nesta perspetiva filosófica, é uma propriedade do determinismo moderado.

O libertarismo é um conceito de filosofia política que defende a liberdade individual e a minimização da influência do Estado como princípios centrais da existência humana. Esta conceção está na base de movimentos políticos como o anarquismo, que defendem a liberdade absoluta do indivíduo relativamente ao Estado.

O libertarianismo tem sido usado como sinónimo de libertarismo.

Perante os conceitos apresentados sumariamente acima, podemos concluir que libertário será aquele que pratica o libertarismo (ou o libertarianismo), dado que é...

Pergunta:

O relativo que não é referido como pronome anafórico. Porquê não? Há alguma gramática que o dê como anafórico e indique a sua necessidade para a coesão frásica?

O complementador que, quando introduz relativas adjetivas, recupera o antecedente. Seria possível relacionar o complementador que com a coesão frásica?

 

Muito obrigado!

Resposta:

A situação colocada pelo consulente situa-se essencialmente no quadro da coesão referencial1, processo para o qual pode contribuir um pronome relativo. Esta situação vem descrita em diversas gramáticas2.

Um dos planos da coesão textual é a coesão referencial. Esta estabelece-se, por exemplo, entre um pronome, que, por ter um conteúdo semântico mínimo, faz a sua referência depender de uma expressão referencial plena. Neste caso, diz-se que o pronome é anafórico e a expressão de que depende é o seu antecedente, como acontece em (1), onde «O João» é antecedente do pronome pessoal anafórico o:

(1) «O João chegou. Vi-o subir as escadas.»

Esta relação anafórica pode igualmente ser estabelecida por pronomes demonstrativos (2) ou por pronomes relativos (3):

(2) «O carro está avariado. Este tem um problema no motor.»

(3) «O carro que comprei está avariado.»

Refira-se, por fim, que não se pode confundir a função do pronome relativo que com a do complementador que. Este último introduz, por exemplo, orações subordinadas substantivas completivas e não contribui para a coesão referencial porque não faz depender a sua significação de nenhum antecedente. Este item lexical funciona no plano gramatical, assegurando a ligação entre constituintes da frase, pelo que poderemos afirmar que contribui para a coesão interfrásica, na medida em que exprime o «tipo[s] de interdependência semântica das frases que ocorrem na superfície textual» (Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa. Caminho, p. 91).

Disponha sempre!

Pergunta:

Gostaria de saber se eu posso ou não usar vírgulas antes da preposição "com".

Vou citar algumas frases de exemplo, que sempre me confundem.

«João me encarou, com os olhos abertos.»

«Leslie segurou a corda enquanto falava, com os olhos brilhando de entusiasmo.»

«Rose lançou um olhar furioso, com sua cabeça balançando.»

Na literatura inglesa, esses casos são mais difíceis de acontecer, pois eles costumam remover o com e deixar a frase intacta. Levantei uma dúvida sobre isso e me foi dito que o com deixaria as frases mais genuínas, pois, caso contrário, soaria a tradução.

Ou seja, o "com" é ou não necessário?

Resposta:

De uma forma geral, o constituinte introduzido pela preposição com não é separado por vírgula do verbo sobre o qual incide, quer introduza um constituinte pedido pelo verbo (complemento oblíquo), como na frase (1), quer um constituinte não pedido pelo verbo (modificador do grupo verbal), como na frase (2):

(1) «Ele concorda com a Maria.»

(2) «Ele arranjou a cadeira com cola de madeira.»

Estes constituintes não levam vírgula porque não têm uma autonomia sintática ou prosódica relativamente ao predicado que integram.

No entanto, existem situações em que o sintagma preposicional introduzido por com assume autonomia prosódica e sintática, como acontece em (3), frase em que o constituinte tem a função semântica de comentário:

(3) «o João passou de ano e teve bons resultados, com todas as ajudas que teve.»

Neste caso, o sintagma preposicional é um constituinte periférico e leva vírgula a separá-lo da informação nuclear da frase, sobre a qual ele apresenta um comentário.

Note-se, ainda, que, com função de modificador, os sintagmas preposicionais introduzidos por com levam vírgula se intercalarem o verbo e os seus complementos, tal como ocorre em (4):

(4) «Ele cortou, com uma faca de serrilha, o pão fresco.»

O uso da vírgula pode também assinalar que o sintagma preposicional incide sobre o verbo nuclear da frase e não sobre o verbo de uma oração subordinada:

(5) «Ele ofereceu aquela cadeira secular para ser recordado por todos, com um gesto de simpatia.»

A vírgula poderá, ainda, ser usada estilisticamente, com o objetivo de destacar a situação descrita no sintagma preposicional, sobretudo em frase mais longas, nas quais o ...

Pergunta:

Estudando as conjunções subordinativas (norma culta), me deparo com a seguinte informação: a preposição desde (sem partícula que) está arrolada na listagem de conjunções subordinativas condicionais conforme transcrito abaixo:

se, salvo se, desde que, exceto se, caso, desde, contanto que, sem que, a menos que, uma vez que, sempre que, a não ser que,…

Ainda estranhei a inclusão de sempre que. Será um lapso ou de fato isso existe na língua culta portuguesa?

Gostaria, se possível fosse, de uma orientação da parte do Ciberdúvidas.

Resposta:

Não nos foi possível identificar uma gramática onde desde e «sempre que» fossem associados à construção condicional.

A título de exemplo, refira-se que autores como Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa) ou Cunha e Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo) incluem entre as conjunções subordinativas condicionais típicas a locução «desde que» (seguida de conjuntivo), mas não referem o uso de desde com esse valor. Também Napoleão Mendes de Almeida (Gramática Metódica da Língua Portuguesa) não inclui desde entre as conjunções com este valor. Por outro lado, todos os gramáticos referidos incluem entre as subordinativas temporais a locução «sempre que».

Assim, não sendo apresentados exemplos que possam validar o uso de desde ou de «sempre que» como conjunção / locução conjuncional condicional, considera-se que tipicamente não se incluem entre as conjunções/locuções conjuncionais com este valor.

Disponha sempre!