Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «Por se reunirem os familiares, tudo ficou bem», a palavra se é pronome reflexivo ou partícula apassivadora?

Como diferenciar se o se é pronome reflexivo ou partícula apassivadora?

Obrigado

Resposta:

Na frase apresentada, a interpretação do pronome se afigura-se dúbia: tanto pode assinalar uma passiva reflexa como ter uma leitura pronominal.

Com efeito, o pronome se pode ter várias funções e surgir em diferentes construções sintáticas:

(i) Pode ser usado como pronome reflexo. Neste caso, o pronome retoma o valor do sujeito da frase, que funciona como seu antecedente, como em (1):

(1) «A Rita viu-se ao espelho.»

Estas construções admitem a paráfrase com a construção «a si próprio»:

(2) «A Rita viu-se a si própria ao espelho.»

(ii) O pronome se pode surgir em passivas reflexas, uma construção em que o verbo, que será transitivo, ocorre sempre na 3.ª pessoa:

(3) «Ouviram-se avisos sonoros na vila.» (= «Alguém ouviu avisos sonoros na vila.»)

Nestas construções, o agente da situação descrita pelo verbo tem uma interpretação indeterminada (equivalente a alguém).

(iii) O pronome se pode ser usado como impessoal, assinalando um traço de indefinição, como em (4):

(4) «Diz-se que vai chover.»

Neste caso não estamos perante uma construção passiva, pois a oração é ativa, como se observa pela possibilidade de paráfrase por (5):

(5) «O João diz que vai chover.»

 Reduzimos, agora, a frase apresentada pelo consulente a (6), para facilitar a análise:

(6) «Os familiares reuniram-se (para conhecerem o testamento).»

Podemos, antes de mais, concluir que (6) e (7) são equivalentes:

(7) «Os familiares foram reunidos para co...

Pergunta:

No seguinte exemplo:

«A promoção da cultura científica visa dar à ciência o mesmo estatuto que possuem saberes como a literatura ou a música»

como devemos classificar as duas palavras destacadas? Campo lexical de «saberes» ou hipónimos de «saberes»?

Obrigada.

Resposta:

As duas classificações são possíveis e, à partida, não se excluem, uma vez que elas correspondem a campos distintos do estudo das relações semânticas entre palavras. O campo lexical pertence ao domínio das estruturas lexicais e a hiperonímia / hiponímia integra as relações de hierarquia.

O significado das palavras é formado por um conjunto de traços semânticos que contribuem para a sua significação. São estes traços semânticos que permitem estabelecer relações entre as diferentes palavras e um determinado domínio conceptual. Assim, palavras como aluno, professor, aula, manual, quadro, giz, sala, intervalo pertencem todas ao domínio conceptual de escola. Esta abordagem do léxico agrupa palavras que estabelecem uma relação temática entre si.

Um tipo de relação semântica de natureza diferente são as relações de hierarquia. Neste domínio, observa-se que há palavras de significado mais geral (os hiperónimos) que englobam palavras de significado mais específico (os hipónimos). Esta relação pode ser testada por meio da construção «Hipónimo É Hiperónimo», que se verifica por exemplo em

(1) «Atum é peixe.»

Este teste permite concluir que a palavra atum se encontra subordinada (é um hipónimo) à palavra peixe, que possui uma significação mais genérica e abrangente dentro de uma determinada área temática (é um hiperónimo).

Campo lexical e relações de hierarquia constituem, portanto, dois domínios distintos de análise semântica das relações entre palavras. Por essa razão, diremos que aluno, professor, aula, manual, quadro, giz, sala, intervalo pertencem ao campo lexical de escola, mas não são hipónimos de escola. A própria aplicação do teste acima referido gera construções semanticamente anómalas:

A família
Neologismos formados a partir de covid
A dinâmica lexical, motivada pela pandemia, tem trazido novas palavras ao léxico português. Em particular, a palavra covid tem gerado uma família de palavras que se vai alargando de tal forma que já se fala em "covidês" (a língua da covid). 
 
Crónica da autora , emitida no programa Páginas de Português do dia 21 de janeiro, na Antena 2. 
 

 

Pergunta:

Desde já, muito obrigada pelo vosso serviço.

Em "Sempre [que saio], o carro avaria-se." e "Felizmente [que ela chegou a tempo].", como se classificam as orações destacadas? (parecem completivas, mas estas só completam verbos, nomes ou adjetivos...

Bem hajam!

Resposta:

Ambas as orações apresentadas são orações completivas de advérbio. A propósito das classes que podem selecionar orações completivas, esclareça-se que nomes, adjetivos, verbos e advérbios podem selecionar orações completivas como seus complementos. O caso dos advérbios é menos frequente, mas ainda assim, é possível assinalar casos como o apresentando com o advérbio felizmente (/cf. também esta resposta).

A oração «que ela chegou a tempo» é uma oração completiva de advérbio que integra uma oração impessoal, na qual o advérbio de modo felizmente funciona como elemento subordinante.

No caso da frase apresentada em (1), temos dois níveis de análise.

(1) «Sempre que saio, o carro avaria-se.»

Num contexto escolar não universitário, «sempre que» é uma locução subordinativa adverbial temporal, que introduz uma oração subordinada adverbial temporal: «sempre que saio», a qual tem a função sintática de modificador do grupo verbal.

Num outro plano de análise, já não enquadrado nos programas da escolaridade obrigatória, podemos analisar a locução «sempre que» como sendo composta pelo advérbio sempre seguido de uma oração completiva, introduzida pelo complementador que, a qual tem a função de exprimir a restrição da significação do advérbio.

Agradecemos as gentis palavras que nos endereça.

Disponha sempre!

Pergunta:

«Uma das grandes diferenças entre a televisão clássica e linear e esta acessível pelo digital é que a primeira era caduca e mortal e a pós-televisão é imortal.»

Como dividir e classificar estas orações ?

Resposta:

A frase apresentada inclui duas orações completivas finitas coordenadas, que se destacam por parênteses retos:

(1) «Uma das grandes diferenças entre a televisão clássica e linear e esta acessível pelo digital é [[que a primeira era caduca e mortal] [e a pós-televisão é imortal]].»

Assim, na frase apresentada, «Uma das grandes diferenças entre a televisão clássica e linear e esta acessível pelo digital» é o constituinte com função de sujeito e o «que a primeira era caduca e mortal e a pós-televisão é imortal» tem a função de predicativo do sujeito.

Esta construção corresponde ao que na Gramática do Português se designa por «construção copulativa especificativa» (cf. p. 1858 [nota 2]).

Disponha sempre!

 

N. A. – A presente resposta teve uma primeira versão em 12/02/2021, mas uma sugestão do consulente Fernando Bueno, que agradecemos, levou-nos a revê-la e a dar-lhe nova redação em 15/02/2020.