Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual a forma correta de colocar o pronome na expressão: «vou-me tornando espectadora» ou «vou tornando-me espectadora»?

Obrigada.

[N. E.: No quadro da norma ortográfica em vigor, escreve-se espectador e espetador. A palavra tem, portanto, dupla grafia.]

Resposta:

A forma correta é a que coloca o pronome átono junto ao verbo auxiliar, como se apresenta em (1):

(1) «Vou-me tornando espectadora.»

O pronome átono com complexos verbais, constituídos por um verbo auxiliar seguido de um verbo principal no gerúndio, é colocado junto do auxiliar:

(2) «Foi-se afastando lentamente.»

No entanto, caso a forma gerundiva seja colocada antes do verbo auxiliar, o pronome átono associa-se obrigatoriamente ao gerúndio, como em (3):

(3) «Afastando-se ia ele lentamente.»1

Note-se que esta regra de colocação do pronome com complexos verbais com gerúndio se distingue das possibilidades de colocação do pronome átono com complexos verbais formados por verbo auxiliar e verbo principal no infinitivo, nas quais o pronome poderá surgir tanto junto da forma infinitiva como junto do auxiliar (como se pode ver nesta resposta).

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Martins in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2290-2293.

Pergunta:

Tenho problemas em explicar a falantes não nativos o uso de «ao fim»/«em fim»/«no fim (final) de», quais a principais diferenças entre eles e como usar uns e não outros.

Por exemplo:

«Em fim de tanto esforço, nada conseguimos.»/«Ao final de tanto esforço, nada conseguimos.»

«Em fim de jogo, já é difícil marcar golos./No fim de/o jogo, já é difícil marcar golos.»/«No final do jogo, já é difícil marcar golos./Ao final de jogo, já é difícil marcar golos.»

«O cão já estava ao/no final da vida.»

«Chego sempre muito cansada em fim de dia.»/ «Chego sempre muito cansada no fim do dia.»/«Chego sempre muito cansada ao fim do dia.»/«Chego sempre muito cansada no final do dia.»/«Chego sempre muito cansada ao final do dia.»

Alguns colegas brasileiros usam indiscriminadamente e dizem-me que são totalmente iguais, mas alguns exemplos parecem soar mal.

Qual é a explicação?

Obrigada pela ajuda!

Resposta:

A oscilação no uso de locuções é uma situação que tem lugar na língua e que está relacionado com a sua natural variação, o que justifica que, em muitas situações, as expressões apresentadas possam, com efeito, ter o mesmo valor. Não obstante, a palavra fim poderá estar associada a diferentes situações de uso que cumpre esclarecer.

Por um lado, pode integrar uma locução adverbial como «no fim» ou «por fim». Em função dos contextos em que são utilizadas, estas locuções podem ter sentidos muito próximos, que expressam a ideia de «por último, finalmente», o que não significa que não assumam especificidades. Por exemplo, a locução «por fim» usa-se no final de uma enumeração para indicar que se vai apresentar o último aspeto:

(1) «Disse, por fim, que tudo tinha corrido bem.»

A locução «no fim» pode assumir um valor de síntese:

(2) «Ele é muito discreto, mas, no fim, só procura a máxima diversão.»

Podemos ainda considerar o uso da locução adverbial «em fim», com o sentido de «no término de»:

(3) «Ele estava em fim de carreira.»

Nesta frase, a locução «no final de» pode ser usada com o mesmo valor:

(4) «Ele estava no final de carreira.»

Noutras situações, o nome fim é usado no interior de um sintagma preposicional, como complemento dessa preposição. Será essa mesma preposição a determinar o sentido do sintagma. Assim, com a preposição em poderá expressar um valor locativo:

(5) «A loja ficava em fim de rua.»

(6) «A loja ficava no fim da rua.» (no =em + o)

Note-se que em ambas as frases a preposição em indica posição no espaço. A diferença entre as frases processa-se no plano de uma...

Pergunta:

Gostaria de tirar uma dúvida: «subir à Torre Eiffel» ou «subir a Torre Eiffel» – qual é a forma correcta? Ou são as duas?

Muito obrigada.

Resposta:

De acordo com os dicionários consultados, ambas as opções são aceitáveis, embora o seu significado possa ser distinto.

Assim, o verbo subir pode ter um uso transitivo direto no qual se constrói com complemento direto, sem recurso a qualquer preposição. Com este uso, podemos encontrar frases em que o verbo é usado com o significado de «percorrer de baixo para cima»1, como em:

(1) «Ele subiu a montanha.»

O verbo pode ter também um uso transito indireto, no qual rege a preposição a ou a preposição para. Estas preposições salientam o movimento associado ao verbo e ajudam a colocar a tónica na conclusão do processo. Com esta construção, o verbo poderá expressar o sentido de «assomar a um lugar proeminente ou sobranceiro»1:

(2) «Ele subiu ao telhado com uma escada.»

(3) «Ele subiu ao palco.»

No caso das frases apresentadas pela consulente, é possível a frase (4), que poderá, por exemplo, salientar o processo de subir, ou a frase (5), que poderá realçar o resultado da ação de subir:

(4) «Ele subiu a Torre Eiffel.»

(5) «Ele subiu à Torre Eiffel.»

Disponha sempre!

 

1. Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

Pergunta:

A estrutura «afigura-se pertinente/imperativo/...» está correta?

Ex: «Neste âmbito, afigura-se pertinente mencionar que a hipálage revela o espaço psicológico de Batola.»

Agradecido.

Resposta:

A construção é aceitável.

De acordo com o Dicionário Priberam, o verbo afigurar com uso pronominal equivale a «mostrar-se na figura de; parecer». Assim, com este sentido, o verbo pode construir-se com adjetivo, como em

(1) «A comunicação afigura-se pertinente.»

(2) «Afigura-se imperativo vires falar comigo.»

Uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies mostra que este tipo de construção tem uma frequência relevante de usos, em situações semelhantes às que se apresentam a título de exemplo:

(3) «A situação dos “militares” afigura-se mais premente em relação às últimas edições da Liga africana […]» (in Sapo Desporto)

(4) «A julgar pela reação dos partidos, a ideia afigura-se absurda.» (in "A infantilização do voto" (jn.pt) )

(5) «[…] afigura-se lógica e desejável a evolução do ARTIS para o formato de Bienal […]» (in "Festival de Artes de Seia passa a Bienal no próximo ano" (dn.pt) )

Disponha sempre!

A falta da preposição numa publicidade da McDonald’s
O recorrente tropeção na regência do verbo gostar

A recente publicidade a um dos seus produtos alimentares não prima pelo bom português ao afirmar sobre um determinado hambúrguer que nele se encontra «A América que mais gostas está aqui», como sinaliza a professora Carla Marques neste apontamento crítico.