Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Em frases como «Joana não gosta de sair com as filhas muito enfeitadas», «Nunca fica em casa com o marido bêbado», «Prefiro assistir ao filme com minha namorada atenta», qual poderia ser a classificação sintática de «muito enfeitadas», «bêbado» e «atenta»?

Obrigado.

Resposta:

As construções apresentadas são muito curiosas porque nelas está presente uma relação entre um sujeito semântico e um predicado sem que exista a mediação de um verbo copulativo1. Assim, os constituintes «as filhas», «o marido», «minha namorada» funcionam como sujeito semântico (e não gramatical, note-se), na medida em constituem a entidade sobre a qual o predicado faz um comentário, «muito enfeitadas», «bêbado» e «atenta», respetivamente. Os constituintes nos quais está presente esta relação são, deste modo, equivalentes aos que se apresentam de seguida:

(1) «as filhas estão muito enfeitadas»

(2) «o marido está bêbado»

(3) «a minha namorada está atenta»

Estamos, assim, em presença de uma predicação secundária, uma vez que a predicação principal se associa em cada frase ao verbo nuclear gostar, ficar ou preferir. Note-se que as predicações secundárias se caracterizam por não serem mediadas por um verbo copulativo, como se disse anteriormente.

A situação descrita tem lugar com sintagmas introduzidos pela preposição com, tal como se dá conta na Gramática do Português: «Outro contexto não oracional em que pode ocorrer uma predicação de base adjetival ou nominal sem verbo copulativo é como complemento da preposição com, num sintagma preposicional com a função de adjunto adverbial e que significa algo como ‘dada a situação x’ ou ‘por causa da situação x’»2.

Embora não tenhamos identificado uma proposta de classificação sintática para os constituintes predica...

A nova bazuca europeia
Da forma ao conteúdo

Da bazuca, conhecido plano de recuperação da União Europeia, até à bazuca, arma de guerra ou instrumento de música, esta é a viagem proposta pela professora Carla Marques na sua crónica emitida no programa Páginas de Português do dia 17 de março, na Antena 2

 

Pergunta:

«O jovem cantor espanhol, de 18 anos, já interpretou este tema no passado e há de interpretá-lo muitas vezes no futuro.»

Como classificariam os pares «jovem» / «18 anos», «interpretou» / «no passado» e «há-de interpretá-lo» / «no futuro»?

Pleonasmos? Redundâncias? Ou...?

Obrigado.

Resposta:

O pleonasmo é um tipo particular de redundância, como se afirma no E-dicionário de termos literários: «Figura de estilo utilizada sempre que se tenha por objectivo reforçar uma ideia, repetindo-a, causando um efeito de eco semântico – a própria etimologia do termo (de origem grega) remete para o enfático: «ser ou ter mais do que o suficiente». O pleonasmo torna-se, portanto, uma redundância (emprego de uma ou várias palavras que repetem uma ideia já contida em vocábulos anteriores)».

Partindo deste conceito, é possível identificar nos pares apresentados pelo consulente uma relação pleonástica, na medida em que se repete a mesma ideia por meio de outras palavras. Não estamos, no entanto, perante um pleonasmo vicioso, que deveria, portanto, ser evitado. Em cada uma das situações apresentadas, a repetição da ideia associa-se a uma clarificação da sua significação. Assim, o constituinte «18 anos» precisa o intervalo de idade a que se refere o adjetivo «jovem»; «no passado» e «no futuro» remetem para uma temporalidade indefinida, associada ora à anterioridade ora à futuridade, sem que haja lugar à indicação de um intervalo de tempo preciso.

Assim todas as expressões, embora pleonásticas, trazem, à partida, informação nova à frase, pelo que contribuem para a sua informatividade.

Disponha sempre!

Pergunta:

Qual das seguintes formas é a correta? De forma a as pessoas poderem passar, temos de desimpedir o caminho. De forma às pessoas poderem passar, temos de desimpedir o caminho. A preposição de não se contrai com artigos quando seguida de formas verbais no infinitivo. Acontece o mesmo com a preposição a?

Muito obrigado pela vossa atenção.

Resposta:

A opção correta é aquela em que a preposição a não contrai com o determinante artigo definido.

Com efeito, a preposição não contrai quando encontra um pronome pessoal ou um determinante que inicia uma oração com um verbo no infinitivo, como acontece em (1) ou (2):

(1) «O facto de o exame já ter começado descansa-me.»

(2) «Por o João não apresentar hoje o trabalho, teremos de fazê-lo nós.»

Neste mesmo contexto, com a preposição a a contração também não se faz na escrita, embora na oralidade seja comum1. Assim, a frase correta será a que se transcreve em (3):

(3) «De forma a as pessoas poderem passar, teremos de desimpedir o caminho.» (Na oralidade, é possível que se diga «De forma às pessoas…»)

Disponha sempre!

 

1. Para mais informação, cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1506-1510.

Pergunta:

Em «Completam-se hoje 42 anos sobre o dia em que regressei a Lisboa, depois de 10 anos de exílio […]. Pisar o chão de Lisboa no dia 2 de maio de 1974 foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida. […]», há inferências deíticas espaciais?

Se há, quais?

Agradecido

Resposta:

As inferências deíticas realizam-se quando há necessidade de preencher uma determinada referenciação de informação relacionada com locutor/interlocutor, espaço ou tempo. Estes processos cognitivos são desencadeados quando o texto não tem presente a informação relacionada, nesse caso, com a referenciação deítica.

Assumindo esta noção de inferência deítica, poderemos considerar que a segunda frase apresentada permite a recuperação de um deítico espacial equivalente a ali, uma vez que o locutor se coloca, através do seu enunciado, nesse espaço. A apresentação de uma referência espacial extratextual explícita permitirá, por inferência, recuperar o deítico ali.

Disponha sempre!