Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Apesar de ter muito dinheiro, é muito avarento.»

«Ainda tendo muito dinheiro, é muito avarento.»

Estas duas frases têm significados semelhantes? A estrutura ainda+gerúndio é concessiva?

Muito obrigado.

Resposta:

O uso referido será possível em algumas situações, embora não pareça ser generalizado, parecendo mais aceitável, do ponto de vista dos falantes, a sua substituição pela construção «mesmo + gerúndio».

Na qualidade de advérbio, ainda pode combinar-se com verbos flexionados em diferentes tempos e modos. De uma forma geral, o advérbio ainda incide sobre o verbo denotando uma informação de valor temporal, relacionada com o facto de a situação ter, por exemplo, um valor durativo, como em (1), ou denotando uma situação que, no limite final do intervalo temporal, acabou por ter lugar, como em (2):

(1) «A Joana ainda foi ao cinema.»

(2) «Ele ainda viu o jogo.»

O advérbio ainda pode incidir igualmente sobre verbos no gerúndio, integrando orações adverbiais gerundivas. Neste caso, o valor da oração é construindo pela própria oração gerundiva e não pelo valor do advérbio isoladamente. Deste modo uma oração gerundiva pode veicular um valor condicional-concessivo, como em (3):

(3) «Mesmo prestando atenção às aulas, não percebeu a matéria.»

Com este uso, é possível assinalar, a partir do Corpus do Português, de Mike Davies, construções com um valor idêntico que integram o advérbio ainda:

(4) «Mas nunca deixamos de atender corretamente alguns representantes da Xunta de Galicia, ainda tendo políticas diametralmente opostas a respeito da língua (e não só).» (in A Viagem dos ArgonautasGalegos de Londres. Notas. – por Carlos Durão)

(5) «Duas blasfêmi...

Pergunta:

«A sua presença na inauguração da loja irá valorizar a mesma iniciativa.»

«A sua presença na inauguração da loja irá valorizar a própria iniciativa.»

É possível usar a palavra mesma, como sinónima de própria no contexto apresentado?

Muito obrigado

Resposta:

Na frase apresentada, a substituição de mesmo por próprio poderá ser viável num discurso mais informal.

Tanto mesmo como próprio podem ser usados com valor anafórico retomando uma palavra que foi usada anteriormente no discurso. Mesmo tem um valor específico que lhe permite indicar “a coincidência, a identidade, a igualdade ou a semelhança”1. Já próprio assinala aquilo “que se refere expressamente ao ser, ao assunto ou à coisa”1. Estes sentidos ficam claros nas diferenças que se estabelecem entre as frases (1) e (2):

(1) «Os mesmos alunos trataram do assunto.»

(2) «Os próprios alunos trataram do assunto.»

No entanto, em usos quotidianos e menos formais, estas frases poderão ser tidas como próximas, veiculando sentidos semelhantes.  Situação similar poderá ocorrer na frase apresentada na questão, pelo que existe alguma viabilidade na substituição de mesmo por próprio. Num contexto mais formal, todavia, é aconselhável usar as palavras com o sentido preciso que o dicionário lhes atribui.

Próprio e mesmo poderão ainda ser usados como sinónimos num contexto em que ambas as palavras significam “que se representam verdadeiramente”1:

(3) «Ele mesmo falou connosco.»

(4) «Ele próprio falou connosco.»

ou com o valor de “reflexo de uma pessoa do discurso"1:

(5) «Ele representa-se a si mesmo.»

(6) «Ele representa-se a si próprio.»

Disponha sempre!

 

Pergunta:

O segmento «agora estão ariscas, escapam-se por entre as mãos» veicula um valor iterativo ou habitual? Porquê?

Neste âmbito, surgiu-me outra questão. Li que os valores iterativo e habitual se podem conjugar. Podem-me explicar quando tal situação acontece?

Obrigado pelo vosso apoio!

Resposta:

Os versos apresentados integram o poema “Agora as Palavras”, de Eugénio de Andrade. Embora esta informação seja sempre necessária por uma questão autoral, no caso do estudo dos valores torna-se fundamental porque o contexto é determinante na sua avaliação.

Recordemos, uma vez mais, as palavras de Campos: «o valor aspectual de uma situação só pode ser estabelecido pela integração progressiva de todos os constituintes que participam na sua definição, a saber, verbo lexical, predicado (SV), sujeito, tempo verbal, adverbial temporal-aspectual, contexto discursivo.»1

Assim o aspeto habitual descreve uma situação que «representa um padrão de repetição da situação suficientemente relevante a ponto de poder ser considerado como uma propriedade característica da entidade representada pelo sujeito gramatical»2. Através do aspeto habitual descreve-se uma situação como repetida de forma ilimitada. O advérbio habitualmente é, normalmente, compatível com uma situação habitual, assim como o presente e o imperfeito do indicativo.

Já o iterativo descreve uma situação «que se obtém quando uma situação é repetida numa porção espácio-temporal delimitada, mas sendo o conjunto dessas repetições perspetivado como um evento único»2. Esta é uma situação descrita como tendo uma repetição apresentada como limitada. Por esta razão, o pretérito perfeito do indicativo é compatível com este aspeto, uma vez que pode marcar o limite final da iteração.

No caso dos versos em análise, o aspeto dominante será, a meu ver, tendencialmente o habitual, uma vez que o poeta descreve um comportamento como sendo uma repetição que é ca...

O Rt e a incidência
O léxico científico na comunicação quotidiana

A linguagem científica entrou no léxico quotidiano e obrigou os falantes a refletirem sobre áreas que envolvem conhecimentos por vezes complexos. É o caso dos termos Rt e incidência, que motivam a crónica da professora Carla Marques no programa Páginas de Português do dia 11 de abril, na Antena 2.

Pergunta:

Na frase «Os Estados Unidos têm a vantagem de estar(em) abertos ao mundo», devemos escrever o verbo flexionado ou no infinitivo?

Obrigado.

Resposta:

As duas formas são possíveis.

A frase apresentada inclui uma oração infinitiva que tem a função de complemento do nome vantagem, o qual rege a preposição de. A oração infinitiva integra, portanto, o sintagma nominal complexo «a vantagem de estar(em) abertos ao mundo».

O sintagma nominal que inclui a oração infinitiva pode incluir um constituinte que funciona como sujeito implícito da forma infinitiva, como acontece em (1), onde o determinante possessivo nosso é assumido como correferente do sujeito implícito do verbo no infinitivo:

(1) «O nosso interesse em lermos este livro nasceu com o programa de televisão.»

Não tendo a forma infinitiva no interior do seu sintagma nenhum sujeito foneticamente realizado, o seu sujeito implícito será correferente com o sujeito da oração subordinante, o que acontece na frase apresentada pelo consulente, na qual o infinitivo assume como sujeito implícito o constituinte «os Estados Unidos»:

(2) «Os Estados Unidos têm a vantagem de estarem abertos ao mundo.»

Por essa razão, a forma infinitiva pode assumir a flexão de 3.ª pessoa do plural com a forma estarem ou manter a forma não flexionada estar por o sujeito ser o da oração subordinante. Note-se, todavia, que frases desta natureza podem assumir um valor genérico, veiculando uma leitura indefinida. Neste caso, o infinitivo será usado na sua forma simples (impessoal ou não flexionada). Por essa razão, a frase apresentada admite as duas possibilidades de uso de infinitivo: a forma flexionada estarem ou a forma não flexionada estar.

Disponha sempre!