Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «matou a charada com tirocínio certeiro» ocorre um caso de alegoria ou se trata de um simples jogo de palavras?

Muito obrigado.

Resposta:

Prezado consulente, não conseguimos responder a esta questão por falta de contexto.

A alegoria é uma figura de estilo que consiste em representar algo para dar ideia de outra coisa, processo que é associado a uma inferência moral. Para além disso, a alegoria tem, por sistema, um alcance que vai além da frase: «Uma forma de distinguir metáfora e alegoria é a proposta pelos retóricos antigos: a primeira considera apenas termos isolados; a segunda, amplia-se a expressões ou textos inteiros.» (Carlos Ceia in E-dicionário de Termos Literários)

Assim sendo, a análise do contexto em que a frase surge poderá esclarecer se a intenção do autor é alegórica, estando ao serviço da construção de um sistema de significações que representam uma outra ideia, de caráter moral, ou se estamos perante um jogo de palavras, que convoca uma interpretação mais localizada dos sentidos trabalhados. Não será ainda despiciendo considerar a hipótese de o autor trabalhar, por meio desta expressão, uma metáfora.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «durante a primavera inteira aprendo os trevos», a forma verbal aprendo e o advérbio durante contribuem para a configuração de uma situação.

A minha dúvida é qual o valor aspectual? Será habitual ou iterativa?

Obrigado.

Resposta:

 A frase apresentada configura um valor habitual

Tanto o valor aspetual habitual como o iterativo descrevem situações durativas, ou seja, situações que têm duração interna e que se opõem a situações pontuais, que não têm duração interna, como acontece em (1):

(1) «Ele tossiu.»

O valor iterativo caracteriza-se pelo facto de descrever uma situação «que se obtém quando uma situação é repetida numa porção espácio-temporal delimitada, mas sendo o conjunto dessas repetições perspetivado como um evento único»1. O valor iterativo descreve a repetição como limitada, como acontece em (2):

(2) «Ele jogou futebol durante a faculdade.»

O valor iterativo é frequentemente expresso como uma situação concluída, por meio do recurso ao pretérito perfeito do indicativo.

Já o valor habitual descreve uma situação que «representa um padrão de repetição da situação suficientemente relevante a ponto de poder ser considerado como uma propriedade característica da entidade representada pelo sujeito gramatical»1. Neste caso, a repetição é apresentada como ilimitada, como em (3):

(3) «Ele joga futebol no Amadora.»

O valor habitual é ainda compatível com o advérbio habitualmente.

No caso da frase apresentada, sem outro contexto que possa alterar esta leitura, consideramos que estamos perante o valor habitual, dado que a situação aponta para um padrão de repetição característico do sujeito e é compatível com o advérbio habitualmente:

(4) «Durante a primavera inteira, hab...

Pergunta:

Em «o guloso do rato», qual a classe de palavras a que pertence guloso?

Trata-se de um adjetivo qualificativo, uma vez que caracteriza o rato («o rato guloso»), ou de um nome, uma vez que é precedido pelo determinante o?

Resposta:

A situação apresentada é muito complexa e não reúne consenso na sua análise.

Assim, pode considerar-se que guloso é um nome (sendo um caso de adjetivo que se converteu em nome), pois é determinado por um artigo definido e é núcleo de um sintagma nominal que pode desempenhar, por exemplo, a função de sujeito numa frase:

(1) «O guloso do rato roubou o queijo.»

Nesta interpretação, o grupo preposicional «do rato» funciona como um modificador do nome. Esta é uma interpretação aceitável em contexto escolar não universitário.

Não obstante, há outras posições que consideram que, em construções desta natureza, não é claro que o adjetivo se tenha convertido em nome, o que se comprova pelo facto de a palavra continuar a denotar uma propriedade do nome que integra o grupo preposicional, como se verifica em (2):

(2) «O João é desonesto.» = «O desonesto do João…»

Na Gramática do Português considera-se que esta não é uma construção ligada à recategorização do adjetivo em nome, mas antes uma construção de natureza geral. O facto de o adjetivo ser acompanhado de um artigo definido é interpretado por aproximação ao espanhol: «Em espanhol, […] o artigo utilizado é o neutro lo, não o masculino el: cf. lo curioso (de la situación) es que Luis haya contestado así. Podemos então especular que um adjetivo pode ser especificado por um determinante neutro, e que no exemplo português ocorre esse determinante, e não o determinante masculino. Teríamos então de aceitar que o português, tal como o espanhol, possui um determinante definido neutro, o qual, no entanto, tem a mesma forma que o masculino.» (Veloso e Raposo,

Pergunta:

A locução conjuntiva «assim como» introduz somente orações comparativas ou pode também servir como coordenada aditiva?

Havendo ambas possibilidades, como estabelecer a diferença entre elas?

Agradeço desde já.

Resposta:

Com efeito, é possível considerar que a locução assim como pode expressar um valor de nexo comparativo ou de adição.

As gramáticas ditas mais tradicionais incluem assim como entre as locuções introdutoras de oração comparativa. É o caso da Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara, que apresenta o seguinte exemplo:

(1) «O jogo, assim como o fogo, consome em poucas horas o trabalho de muitos anos” [MM]»1

Não obstante, outras perspetivas, como a que está patente na Gramática do Português, coordenada por Eduardo Raposo, sustentam que construções desta natureza não correspondem a construções comparativas típicas, que envolvem uma comparação de grau. Defendem, assim, que «Um […] tipo de construção classificada como “comparativa” por gramáticas tradicionais, mas que se distingue das construções comparativas de grau, é ilustrada pelas frases de (67), que são estruturas de coordenação, equivalentes a (68):

(67) a. Tanto o Paulo como a Ana mostraram interesse pela proposta.

        b. A Sara tanto domina o francês como o inglês.

(68) a. O Paulo mostrou interesse pela proposta e a Ana também.

        b. A Sara domina o francês e domina o inglês.» (p. 2159)

Pelo que ficou exposto, parece claro que a locução assim como poderá ser usada nas mesmas situações apresentadas nos exemplos anteriores, assegurando uma conexão...

Pergunta:

Qual é o uso correto na seguinte frase:

«A DGS apelou para a tranquilidade das pessoas que tomaram a vacina», ou «A DGS apelou à tranquilidade das pessoas...»?

Ou, melhor ainda, deveria ser «A DGS apelou às pessoas que tomaram a vacina para se manterem tranquilas»? Parece que há uma fixação com o uso obrigatório do «apelar para», o que nem sempre está correto, certo?

Muito obrigada.

Resposta:

O verbo apelar é alvo de inúmeras controvérsias relacionadas com as preposições que pode reger (como se pode observar nesta resposta).

Pode ser usado com o sentido de «pedir ajuda ou auxílio de alguém para ultrapassar alguma dificuldade. RECORRER A»1.

(1) «Em ocasião de crise é necessário apelar para o esforço de toda a população.»2

Neste uso, segundo o Dicionário Prático de Regência Verbal, de Celso Luft, o verbo apelar pode reger tanto a preposição para como a preposição a, como se observa pelos exemplos apresentados pelo autor:

(2) «apelar para os amigos»

(3) «apelar a Deus»

Assim sendo, e pegando nas frases apresentadas pela consulente, se buscarmos uma expressão rigorosa, a forma preferível será:

(4) «A DGS apela para / às pessoas que tomaram a vacina para que mantenham a tranquilidade.»

No entanto, se atentarmos na frase que se apresenta em (1) e que corresponde a (5):

(5) «É necessário apelar a/para toda a população para que se esforce.»

veremos que é possível converter a construção «população para que se esforce» num constituinte nominal que passa a ser argumento do verbo: «o esforço de toda a população». Deste modo, concluímos que a mesma operação de nominalização é possível na frase (4), o que permit...