Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Faça o tempo que fizer, vou dar um pequeno passeio todos os dias.»

Nesta oração concessiva, o elemento de ligação é «o tempo que» ou «que»? Porque é que usa «que» aqui e o que significa a oração concessiva?

Resposta:

Na verdade, não poderemos considerar formalmente que o segmento «faça o tempo que fizer» constitui uma oração subordinada adverbial concessiva, na medida em que esta não estabelece com a outra oração uma relação de subordinação. Para além disso, não é introduzida por uma conjunção / locução conjuncional que assegure esta relação de subordinação. Na frase estabelece-se, antes, uma relação de parataxe que tem um valor de concessão-condição, sendo o segmento «faça o tempo que fizer» é equivalente a «mesmo que faça mau tempo», pelo que a frase apresentada pelo consulente pode ser considerada equivalente a (1)1:

(1) «Mesmo que faça mau tempo, vou dar um pequeno passeio todos os dias.»

Ou seja, o segmento «Faça o tempo que fizer» apresenta uma situação que poderia impedir a realização da situação descrita na segunda oração («dar um passeio todos os dias»), mas não tem força suficiente para o fazer.

Disponha sempre!

 

1. Lobo apresenta as expressões «aconteça o que acontecer» e «seja lá como for» como tendo também um valor condicional-concessivo (cf. in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2019, nota 55. 

Pergunta:

Gostaria de saber se é correto utilizar tanto os qualificativos maior/menor como mais alta/mais baixa com o termo "prioridade". Ou seja:

1. A prioridade do processo A é mais alta do que a prioridade do processo C

2. A prioridade do processo A é maior do que a prioridade do processo C

Estão ambas corretas?

Obrigada.

Resposta:

A questão que coloca implica, antes de mais, saber se os adjetivos alta e grande1 são compatíveis com o nome prioridade. Uma pesquisa no Corpus de Português, de Mike Davies, permite identificar usos nas duas situações, como se comprova pelas seguintes frases:

(1) «A reactivação e reformulação do poder popular foi uma medida da mais alta prioridade.» (in Problemas da construção do socialismo (resistir.info))

(2) «O governo deu uma prioridade grande para a educação, o que é importante.» (in UMA LULIK: "Desenvolvimento de Timor Leste em uma década)

Assim sendo, é uma vez que os adjetivos admitem variação em grau, é possível introduzi-los numa frase em que expressem o grau comparativo, como aquelas que a consulente apresenta:

(3) «A prioridade do processo A é mais alta do que a prioridade do processo C.»

(4) «A prioridade do processo A é maior do que a prioridade do processo C.»

Acrescente-se que a escolha de «mais alta» ou de maior não é indiferente, uma vez que não estamos perante palavras sinónimas. Deste modo, no caso da frase (3), o advérbio mais quantifica o adjetivo alta, reforçando a ideia de maior quantidade, grau. Logo, a frase (3) expressa a ideia de que a prioridade de A se caracteriza por ter um grau mais intenso do que a prioridade de C. Na frase (4), maior expressa a ideia de que algo excede outro em tam...

Pergunta:

É comummente utilizado por vários políticos, jornalistas, comentadores e várias outras figuras públicas, na televisão, no início de qualquer discurso o "dizer que", "observar que", "acrescentar que", sem qualquer continuação na sintaxe que permita que a utilização do verbo no infinitivo seja um sujeito. Exemplo:

«Boa noite a todos os presentes. Em primeiro lugar, dizer que, estamos a fazer todos os esforços necessários para contenção desta pandemia. Acrescentar que, apresentaremos ainda hoje um conjunto de medidas de auxílio á economia. Observar que, estaremos atentos ao aumento de casos.»

Não tenho qualquer dúvida do erro. Na minha opinião, é um erro grosseiro, que se está a generalizar.

Gostaria que o Ciberdúvidas deixasse registado o quão grave é este erro, para bom uso da língua portuguesa.

Resposta:

Com efeito, a construção «dizer + oração completiva» pode desempenhar a função de sujeito, como acontece em (1):

(1) «Dizer que chegaria atrasado teria sido um ato de delicadeza.»

Todavia, como afirma o consulente, não é o que acontece nas frases em questão, de que (2) se constitui como exemplo:

(2) «Em primeiro lugar, dizer que estamos a fazer todos os esforços necessários para contenção desta pandemia.»

Esta construção será, a meu ver, uma estrutura truncada que resulta da omissão de uma oração subordinante, que poderia corresponder ao que se apresenta em (3), onde se destaca a oração que poderá ter sido omitida:

(3) «Em primeiro lugar, gostaria de dizer que estamos a fazer todos os esforços necessários para contenção desta pandemia.»

Assim sendo, trata-se de uma construção que é característica de contextos informais de uso da língua, sobretudo na modalidade oral informal, e que poderá estar a constituir-se como modismo. Não obstante, deverá ser evitada em contextos de uso mais formais.

Disponha sempre!

47 palavras nos 47 anos do 25 de Abril
Neologismos, anglicismos, modismos e erros

No 47.º aniversário do 25 de Abril, a professora Carla Marques procurou 47 palavras que, de alguma forma, marcam o tempo em que se vive: desde neologismos a anglicismos, passando pelos modismos e pelos erros.

Pergunta:

A estrutura «o que implica não só ouvi-la» está correta, ou tem de ser «o que implica não só a ouvir»? Porquê?

Não entendo o porquê, especialmente porque estamos perante os vocábulos não e , que, teoricamente, exigem a posição proclítica.

Agradecido.

Resposta:

Com efeito, em termos muito gerais, tanto o advérbio como o advérbio não são indutores de próclise, ou seja, ambos atraem o pronome para uma posição anterior ao verbo. Não obstante, com orações infinitivas subordinadas, o advérbio não, quando incide sobre a oração subordinada, pode associar-se tanto a ênclise (colocação depois do verbo) como a próclise (colocação antes do verbo)1:

(1) «Ele receou não o encontrar em casa.»

(2) «Ele receou não encontrá-lo em casa.»

Por essa razão, ambas as frases apresentadas pelo consulente são aceitáveis.

Disponha sempre!

  

1. cf. Martins in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2278-2279.