Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

O segmento «agora estão ariscas, escapam-se por entre as mãos» veicula um valor iterativo ou habitual? Porquê?

Neste âmbito, surgiu-me outra questão. Li que os valores iterativo e habitual se podem conjugar. Podem-me explicar quando tal situação acontece?

Obrigado pelo vosso apoio!

Resposta:

Os versos apresentados integram o poema “Agora as Palavras”, de Eugénio de Andrade. Embora esta informação seja sempre necessária por uma questão autoral, no caso do estudo dos valores torna-se fundamental porque o contexto é determinante na sua avaliação.

Recordemos, uma vez mais, as palavras de Campos: «o valor aspectual de uma situação só pode ser estabelecido pela integração progressiva de todos os constituintes que participam na sua definição, a saber, verbo lexical, predicado (SV), sujeito, tempo verbal, adverbial temporal-aspectual, contexto discursivo.»1

Assim o aspeto habitual descreve uma situação que «representa um padrão de repetição da situação suficientemente relevante a ponto de poder ser considerado como uma propriedade característica da entidade representada pelo sujeito gramatical»2. Através do aspeto habitual descreve-se uma situação como repetida de forma ilimitada. O advérbio habitualmente é, normalmente, compatível com uma situação habitual, assim como o presente e o imperfeito do indicativo.

Já o iterativo descreve uma situação «que se obtém quando uma situação é repetida numa porção espácio-temporal delimitada, mas sendo o conjunto dessas repetições perspetivado como um evento único»2. Esta é uma situação descrita como tendo uma repetição apresentada como limitada. Por esta razão, o pretérito perfeito do indicativo é compatível com este aspeto, uma vez que pode marcar o limite final da iteração.

No caso dos versos em análise, o aspeto dominante será, a meu ver, tendencialmente o habitual, uma vez que o poeta descreve um comportamento como sendo uma repetição que é ca...

O Rt e a incidência
O léxico científico na comunicação quotidiana

A linguagem científica entrou no léxico quotidiano e obrigou os falantes a refletirem sobre áreas que envolvem conhecimentos por vezes complexos. É o caso dos termos Rt e incidência, que motivam a crónica da professora Carla Marques no programa Páginas de Português do dia 11 de abril, na Antena 2.

Pergunta:

Na frase «Os Estados Unidos têm a vantagem de estar(em) abertos ao mundo», devemos escrever o verbo flexionado ou no infinitivo?

Obrigado.

Resposta:

As duas formas são possíveis.

A frase apresentada inclui uma oração infinitiva que tem a função de complemento do nome vantagem, o qual rege a preposição de. A oração infinitiva integra, portanto, o sintagma nominal complexo «a vantagem de estar(em) abertos ao mundo».

O sintagma nominal que inclui a oração infinitiva pode incluir um constituinte que funciona como sujeito implícito da forma infinitiva, como acontece em (1), onde o determinante possessivo nosso é assumido como correferente do sujeito implícito do verbo no infinitivo:

(1) «O nosso interesse em lermos este livro nasceu com o programa de televisão.»

Não tendo a forma infinitiva no interior do seu sintagma nenhum sujeito foneticamente realizado, o seu sujeito implícito será correferente com o sujeito da oração subordinante, o que acontece na frase apresentada pelo consulente, na qual o infinitivo assume como sujeito implícito o constituinte «os Estados Unidos»:

(2) «Os Estados Unidos têm a vantagem de estarem abertos ao mundo.»

Por essa razão, a forma infinitiva pode assumir a flexão de 3.ª pessoa do plural com a forma estarem ou manter a forma não flexionada estar por o sujeito ser o da oração subordinante. Note-se, todavia, que frases desta natureza podem assumir um valor genérico, veiculando uma leitura indefinida. Neste caso, o infinitivo será usado na sua forma simples (impessoal ou não flexionada). Por essa razão, a frase apresentada admite as duas possibilidades de uso de infinitivo: a forma flexionada estarem ou a forma não flexionada estar.

Disponha sempre!

Pergunta:

Qual a forma correta de colocar o pronome na expressão: «vou-me tornando espectadora» ou «vou tornando-me espectadora»?

Obrigada.

[N. E.: No quadro da norma ortográfica em vigor, escreve-se espectador e espetador. A palavra tem, portanto, dupla grafia.]

Resposta:

A forma correta é a que coloca o pronome átono junto ao verbo auxiliar, como se apresenta em (1):

(1) «Vou-me tornando espectadora.»

O pronome átono com complexos verbais, constituídos por um verbo auxiliar seguido de um verbo principal no gerúndio, é colocado junto do auxiliar:

(2) «Foi-se afastando lentamente.»

No entanto, caso a forma gerundiva seja colocada antes do verbo auxiliar, o pronome átono associa-se obrigatoriamente ao gerúndio, como em (3):

(3) «Afastando-se ia ele lentamente.»1

Note-se que esta regra de colocação do pronome com complexos verbais com gerúndio se distingue das possibilidades de colocação do pronome átono com complexos verbais formados por verbo auxiliar e verbo principal no infinitivo, nas quais o pronome poderá surgir tanto junto da forma infinitiva como junto do auxiliar (como se pode ver nesta resposta).

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Martins in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2290-2293.

Pergunta:

Tenho problemas em explicar a falantes não nativos o uso de «ao fim»/«em fim»/«no fim (final) de», quais a principais diferenças entre eles e como usar uns e não outros.

Por exemplo:

«Em fim de tanto esforço, nada conseguimos.»/«Ao final de tanto esforço, nada conseguimos.»

«Em fim de jogo, já é difícil marcar golos./No fim de/o jogo, já é difícil marcar golos.»/«No final do jogo, já é difícil marcar golos./Ao final de jogo, já é difícil marcar golos.»

«O cão já estava ao/no final da vida.»

«Chego sempre muito cansada em fim de dia.»/ «Chego sempre muito cansada no fim do dia.»/«Chego sempre muito cansada ao fim do dia.»/«Chego sempre muito cansada no final do dia.»/«Chego sempre muito cansada ao final do dia.»

Alguns colegas brasileiros usam indiscriminadamente e dizem-me que são totalmente iguais, mas alguns exemplos parecem soar mal.

Qual é a explicação?

Obrigada pela ajuda!

Resposta:

A oscilação no uso de locuções é uma situação que tem lugar na língua e que está relacionado com a sua natural variação, o que justifica que, em muitas situações, as expressões apresentadas possam, com efeito, ter o mesmo valor. Não obstante, a palavra fim poderá estar associada a diferentes situações de uso que cumpre esclarecer.

Por um lado, pode integrar uma locução adverbial como «no fim» ou «por fim». Em função dos contextos em que são utilizadas, estas locuções podem ter sentidos muito próximos, que expressam a ideia de «por último, finalmente», o que não significa que não assumam especificidades. Por exemplo, a locução «por fim» usa-se no final de uma enumeração para indicar que se vai apresentar o último aspeto:

(1) «Disse, por fim, que tudo tinha corrido bem.»

A locução «no fim» pode assumir um valor de síntese:

(2) «Ele é muito discreto, mas, no fim, só procura a máxima diversão.»

Podemos ainda considerar o uso da locução adverbial «em fim», com o sentido de «no término de»:

(3) «Ele estava em fim de carreira.»

Nesta frase, a locução «no final de» pode ser usada com o mesmo valor:

(4) «Ele estava no final de carreira.»

Noutras situações, o nome fim é usado no interior de um sintagma preposicional, como complemento dessa preposição. Será essa mesma preposição a determinar o sentido do sintagma. Assim, com a preposição em poderá expressar um valor locativo:

(5) «A loja ficava em fim de rua.»

(6) «A loja ficava no fim da rua.» (no =em + o)

Note-se que em ambas as frases a preposição em indica posição no espaço. A diferença entre as frases processa-se no plano de uma...