Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

No segmento «um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso, e tão conhecidamente traidor?» (Padre António Vieira, Sermão de Santo António), podemos constatar a presença de uma gradação. Mas, não podemos constatar também a presença de uma anáfora? Ou a anáfora é apenas a repetição de palavras no início de, pelo menos, duas frases ou dois versos?

Resposta:

No segmento apresentado, podemos considerar que se conjugam a gradação com a anáfora para produzir um efeito estilístico.

Por um lado, a gradação consiste em «distribuição progressiva de uma série de elementos, em ordem ascendente se se caminhar para um clímax, ou em ordem descendente, se se regredir até um momento de anticlímax.»1 Ora, no segmento de Vieira, percebemos que o autor apresenta um conjunto de termos que se organizam em patamares de atitudes negativas, até se chegar a uma posição extrema de deslealdade, considerada o pior e mais perigoso vício de personalidade.

Por outro lado, de acordo com Massaud Moisés, a anáfora é uma «[f]igura de linguagem, também chamada epanáfora, que consiste na repetição de uma ou mais palavras no princípio de sucessivos segmentos métricos (versos) ou sintáticos»2. No segmento em análise, a anáfora está presente na repetição do advérbio tão, que se associa a cada um dos traços de personalidade elencados.

No seu todo, a gradação e a anáfora conjugam-se para intensificar a caracterização negativa do polvo, funcionando no plano argumentativo para a rejeição deste tipo de personalidade.

Disponha sempre!

 

1. Ceia, E-dicionário de termos literários.

2. Massaud Moisés, Dicionário de Termos Literários. Cultrix, p. 23.

Pergunta:

Relativamente à palavra filiado, a forma correta de escrever é «por ser filiada NA rede...» ou «por ser filiada À rede...»?

Resposta:

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, o complemento do adjetivo (ou nome) filiado pode ser introduzido tanto pela preposição em como pela preposição a.

Celso Luft, no Dicionário Prático de Regência Nominal, faz uma distinção nos usos em função do significado associado a filiado. Assim, se a palavra for usada com o sentido de «ligado», constrói-se com a preposição a:

(1) «Filiado à ortodoxia do PMDB, o governo enfrentou a política salarial.»1

Se for usada com o sentido de «associado», usar-se-ão as preposições a e em:

(2) «Programa [do sistema telecheque] atinge filiados à Federasul»

(3) «Filiados nas associações de diversos feitios e nomes»

Quando se trata da associação a um certo partido político, em português europeu, parece existir preferência pela preposição em (de acordo com uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies): 

(4) «Estava filiado no partido dos Verdes.»

Por falta de contexto, não conseguimos determinar com exatidão qual o sentido associado a filiado no segmento frásico apresentado pela consulente. Não obstante, partindo do princípio de que é usado com o valor de «ligado», a preposição a usar será a:

Pergunta:

Nas frases

«A Joana mora com a Maria.»

«Ambas moram em Leiria.»

«O António vai morar para Lisboa.»

As expressões «com a Maria», «em Leiria» e «para Lisboa» desempenham todas a função sintática de complemento oblíquo?

Surgiu-me esta "dúvida tola" quando tentava aplicar várias preposições a este verbo intransitivo e, como não encontrei nenhuma gramática onde constem todas as preposições que podem ser usadas com alguns destes verbos (como no caso de «ir a, com, contra, de, para, por») senti necessidade de recorrer aos vossos prestimosos serviços.

Grata.

Resposta:

Em todas as frases os constituintes introduzidos por preposição desempenham a função de complemento oblíquo, embora sejam complementos de verbos distintos.

Assim, na frase transcrita em (1), o verbo morar é transitivo indireto pedindo um complemento de lugar onde, que é preenchido pelo grupo preposicional «em Leiria»:

(1) «Ambas moram em Leiria

O constituinte sublinhado desempenha, portanto, a função de complemento oblíquo.

O verbo morar também pode ser usado com o sentido de «compartilhar moradia; viver com» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Com esse sentido, o verbo constrói-se com a preposição com, como acontece em (2):

(2) «A Joana mora com a Maria.»

Nesta frase, o constituinte «com a Maria» desempenha a função de complemento oblíquo.

Na frase (3), o grupo preposicional «para Lisboa» não é um complemento do verbo morar, mas sim do verbo ir, o que fica patente no facto de a eliminação do verbo ir em (4) produzir uma frase distinta de (3). A frase (5) já será equivalente a (3) e mostra que o constituinte «para Lisboa» é argumento do verbo ir1:

(3) «O António vai morar para Lisboa.»

(4) «O António mora para Lisboa.»

(5) «O António vai para Lisboa [para morar lá].»

Assim sendo, em (3), o grupo preposicional «para Lisboa» desempenha a função de complemento oblíquo do verbo ir.

Disponha sempre!

 

Pergunta:

Numa resposta a uma pergunta feita por mim, cujo título é “Concordância com infinitivo: 'Agrada-me dançar e cantar'”, a consultora Carla Marques disse: «um sujeito composto por duas orações coordenadas desencadeia uma concordância na 3.ª pessoa do singular». E justificou citando um trecho da Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian). Compreendi muito bem a sua resposta, pela qual lhe fico muito agradecido.

Só que, lendo na Nova Gramática do Português Contemporâneo de Lindley Cintra e Celso Cunha, em relação a concordância, apareceu o seguinte:

«Mas o verbo pode ir para o plural quando os infinitivos exprimem ideias nitidamente contrárias:

«Em sua vida, à porfia, Se alternam rir e chorar.» (A. de Oliveira, Póst., 43.).” »

Aí, eu pergunto:

1.º Por que há a possibilidade de o verbo ir para a 3.ª pessoa do plural, já que o sujeito feito de infinitivos não possui um núcleo pronominal ou nominal a ser fonte para uma concordância numérica?

2.º Então, teria de aceitar que «rir e chorar» são sujeitos compostos apesar de não possuir um núcleo pronominal ou nominal?

Desde já, muito obrigado.

Resposta:

Na resposta dada anteriormente abordámos os casos gerais de concordância do verbo com sujeito composto constituído por orações infinitivas. Consideramos agora alguns casos específicos.

Com efeito, tanto Cunha e Cintra1 como Raposo2 assinalam a possibilidade de, em casos particulares, o verbo flexionar no plural quando o sujeito composto inclui duas orações infinitivas3.

Raposo acrescenta ainda que «[e]ssa concordância torna-se mesmo obrigatória quando o predicado exige um sujeito semanticamente plural, como p.e., alternar-se ou o predicado recíproco excluir-se mutuamente […]»4

Para explicar esta possibilidade de concordância do verbo na 3.ª pessoa do plural, Raposo avança a hipótese explicativa de que se pode atribuir às orações infinitivas uma natureza nominal, o que permitira marcá-las com o traço de número singular. Por essa razão, em certas situações e para alguns falantes, ocorrendo em estruturas compostas, duas orações infinitivas coordenadas podem desencadear a concordância na 3.ª pessoa do plural.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo. Ed. Sá da Costa, p. 507.

2. Cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2449-2450, caixa [5].

A concordância do verbo <br>com um numeral percentual
Regra geral e especificidades

Diário de Notícias escreveu em manchete «Jovens fogem do país. 70% ganhava menos de mil euros e lá fora recebe mais de 2 ou 3 mil». Este título deixou dúvidas ao ator Diogo Infante devido à concordância do verbo. Este é o tópico que dá matéria ao apontamento da professora Carla Marques no Páginas de Português, da Antena 2 (18/02/2022).