Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Nas estruturas abaixo, o segmento "que lhe tinha ensinado ser", da forma em que se encontra colocado, está correto?

«Sobre o filho, o pai pensava: José, sim, sempre cuidando das obrigações como gente de bem que lhe tinha ensinado ser!»

Obrigada.

Resposta:

A construção apresentada não é correta porque deveria incluir uma preposição antes do verbo ser. Assim, a frase deveria ser construída tal como se apresenta em (1):

(1) «Sobre o filho, o pai pensava: José, sim, sempre cuidando das obrigações como gente de bem que lhe tinha ensinado a ser!»

Como refere Luft, o verbo ensinar, quando construído com infinitivo rege preposição, devendo obedecer à estrutura «ensinar alguém a fazer algo»1.

A frase apresentada é ainda particular pelo facto de incluir um caso de movimento relativo longo2, o que dificulta a análise sintática da estrutura.

Nesta frase, encontramos uma oração relativa que tem uma oração completiva encaixada no seu interior, como se demonstra pelos parênteses retos em (2):

(2) «Sobre o filho, o pai pensava: José, sim, sempre cuidando das obrigações como gente de bem [que lhe tinha ensinado [a ser [-]]]!»

O sinal [-] representa o espaço que o pronome relativo ocupa na frase, o que nos permite observar que este não desempenha uma função sintática dependente do verbo ensinar, mas sim do verbo ser. A estrutura presente na frase em análise é, assim, equivalente à que se indica em (3):

(3) «[ele] tinha-lhe ensinado a ser gente de bem»*

Deste modo se conclui que o pronome relativo que desempenha a função de predicativo do sujeito no interior da oração completiva infinitiva que se encontra encaixada na oração relativa tomando como antecedente o sintagma nominal «gente de bem».

Nesta construção, o que não é tão comum (pelo menos em análises escolares) é o facto de o relativo se deslocar da sua oração para a cabeça da oração superior, a relativa. É a este fenómeno qu...

Pergunta:

Na frase «Ele portou-se corretamente», o advérbio tem a função sintática de complemento oblíquo?

Obrigada!

Resposta:

 Em contexto não universitário, o constituinte em questão poderá ser classificado como complemento oblíquo.

Em português, verbos como (com)portar-se, cheirar, funcionar, vestir-se combinam-se com expressões que têm um valor de modo. Estas expressões são selecionadas pelo verbo e não podem ser eliminadas da frase sob pena de esta ficar agramatical:

(1) «O jardim cheira bem.» (vs. *«O jardim cheira.»)

(2) «Ele portou-se corretamente.» (vs. *«Ele portou-se.»)

Por esta razão, estes constituintes poderão ser classificados com a função de complemento oblíquo.

Em contexto universitário, identificar-se-ão diferenças entre a relação que estes constituintes mantêm com verbos como os assinalados acima e a relação que os constituintes mantêm com verbos como morar, pôr, viver (entre outros). Sustenta-se, neste contexto, que os advérbios com valor de modo desempenham uma função de “quase argumento”, pois não representam entidades que participem na situação descrita. Por esta razão, não serão efetivamente um complemento do verbo, constituindo uma situação de transição entre o complemento e o modificador1.

Disponha sempre!

 

*assinala a agramaticalidade da frase.

1. Para mais informações, cf. Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1594 – 1596 e Gonçalves e Raposo in Idem, Ibidem, p. 1187.

Pergunta:

Qual destas formulações está correta?

«Quem canta assim é José Oliveira e Carlos Parreira»

ou

«Quem canta assim são José Oliveira e Carlos Parreira»?

Obrigada.

Resposta:

As duas possibilidades são aceitáveis.

A frase apresentada inclui uma estrutura pseudoclivada. Este é um tipo de construção que permite focalizar um elemento da frase. Estas construções em particular caracterizam-se por colocar uma oração introduzida por um pronome relativo à cabeça da frase, seguida do verbo ser e do constituinte clivado no final1. Assim a frase (2) é uma construção pseudoclivada que coloca o foco no sujeito da frase (1):

(1) «O João chegou tarde.»

(2) «Quem chegou tarde foi o João

Este tipo de construções tem duas particularidades em termos de concordância1:

(i) o verbo ser concorda em tempo com o verbo da oração relativa:

    (3) «Quem chegará tarde será o João.»

(ii) o verbo ser concorda em número com o sujeito clivado:

     (4) «Quem chegou tarde foste tu

     (5) «Quem chegou tarde fomos nós

Note-se por outro lado que em casos de sujeito composto em posição pós-verbal, o verbo poderá concordar com o constituinte mais próximo, como acontece em (6):

(6) «Quem chegou tarde foste tu e o teu irmão.»

Assim, nas frases apresentadas pelo consulente as duas opções são possíveis: o verbo ...

Pergunta:

Recentemente, eu li uma definição que mexeu comigo. Aprendi a minha vida toda que um verbo de ligação mais um predicativo automaticamente pedem um sujeito (assim está na gramática de Pasquale e Ulisses).

Porém... o mundo não é feito apenas de 'coisas' boas e fáceis!

Celso Cunha e Lindley Cintra usaram uma definição que vai totalmente de encontro ao meu aprendizado:

«Nas orações impessoais o verbo ser concorda em número e pessoa com o predicativo.»

Repararam?

Oração sem sujeito+verbo de ligação+predicativo.

Ou seja, na frase «são 14 horas», eu tenho um predicativo sem sujeito?

Obs.: Luft também coloca predicativos sem sujeito em seu Dicionário Prático de Regência Verbal.

Desde já agradeço a enorme atenção que sempre tiveram com «curiosos da Língua Portuguesa».

Resposta:

Frases como a que se apresenta em (1) correspondem a construções nas quais o verbo ser procede a uma localização temporal:

(1) «São catorze horas.»

Em frases desta natureza, o momento localizado (sobre o qual se faz a localização temporal) corresponde ao próprio momento de enunciação. Por essa razão, embora estes exemplos normalmente não incluam um constituinte com a função de sujeito, «são implicitamente interpretados como asserindo algo sobre o momento ou intervalo deiticamente determinados (p.e., o ‘agora’ a enunciação, ou outro intervalo dêitico mais lato como ‘hoje’)»1..

No que se refere à concordância, neste tipo de construções o verbo ser concorda em número com o constituinte que desempenha a função de predicativo do sujeito2:

(2) «São duas horas.»

(3) «É uma da tarde.»

Disponha sempre!

 

1. Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1328 – 1329.

2. Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2482 – 2483.

Pergunta:

Vendo há dias um programa sobre as médicas e sufragistas Carolina Beatriz Ângelo e Adelaide Cabete, uma das investigadoras ouvidas usou o termo «neutro universal», referindo-se a questões levantadas na época sobre cargos e funções em que prevalecia o masculino.

Como desconheço o termo e não encontrei qualquer registo/explicação, fica a pergunta: «neutro universal» é um conceito linguístico?

Os meus agradecimentos antecipados.

Resposta:

Não conseguiremos apurar com rigor a intenção do que ficou dito no programa em questão.

Não obstante, poderemos dizer que a expressão «neutro universal» é usada nalguns contextos gramaticais para descrever o uso do género masculino como forma que abrange tanto o masculino como o feminino.

Este conceito tem vindo a ser discutido em contexto de propostas para a linguagem inclusiva onde se tem avançado a adoção de um género neutro que possa funcionar como o «novo neutro universal».

É possível que, no contexto de profissões tipicamente ocupadas por pessoas do género masculino, esta expressão possa ter sido usada em tom crítico para mostrar a importância de mulheres como as referidas na pergunta para questionar esta ordem estabelecida.

Disponha sempre!