Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Produção do cinema = produção cinematográfica.

Produção da televisão = produção televisiva.

E produção de vídeo = produção vidática? Videática? Ou qual a palavra?

Aproveitando: por que razão, nesse caso, é "produção de vídeo" e não "produção do vídeo" mesmo?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

O adjetivo videático não tem registo dicionarístico, mas é uma palavra bem formada.

Videático forma-se a partir da associação do sufixo -ático (que exprime um valor de relação) ao radical video-, formando uma palavra com o significado de “relativo a vídeo”.

Em textos do Brasil, encontramos vários registos do adjetivo em textos atuais:

(1) «letramento videático («Esse vídeo é um tapa na cara»)

(2) «resenha fotográfica (e videática)» (Retrópolis)

(3) «linguagem 'videática'» (Youtube) 

(4) «imagem videática» («Cinema no contexto escolar: por uma pedagogia da criação»)

Pelo exposto, consideramos que o recurso ao adjetivo videático é aceitável.

Relativamente à omissão do artigo em «produção de vídeo», teremos, antes de mais, de recordar que as razões que levam à omissão do artigo poderão ser diferentes entre o português europeu e o português do Brasil. Assim, numa abordagem de natureza gramatical que não considera estas diferenças, poderemos dizer que a opção pelo uso ou omissão do artigo está muitas vezes relacionada com a oposição entre o valor [+definido] e [-definido]. Quando usamos o artigo em «produção da televisão» ou «produção do cinema», estamos a especificar televisão e cinema como entidades concretas. Quando não o fazemos com

Pergunta:

Não me parece correcta a frase, repetida amiúde nos canais de televisão: «Invasão da Rússia à Ucrânia».

Agradecia o vosso parecer.

 

N. E. (19/12/2022) – Mantém-se a grafia correcta, conforme a anterior norma, seguida pelo consulente. No contexto da ortografia em vigor, escreve-se correta.

Resposta:

A construção em causa é aceitável.

O sintagma em análise é considerado uma nominalização, ou seja, uma conversão de um sintagma verbal numa construção em torno de um nome formado a partir do verbo (chamado nome deverbal). Este tipo de construção parte de um sintagma verbal, como o que se apresenta em (1), e resulta na nominalização apresentada em (2):

(1) «A carta chegou.»

(2) «a chegada da carta»

O nome chegada é considerado deverbal. Nomes desta natureza têm a particularidade de herdar os argumentos do verbo. Por essa razão, chegada é um nome que pede um complemento. Neste caso, o complemento «da carta» corresponde ao sujeito do verbo chegar e expressa o agente da ação, aquele que a executou. Este tipo de complemento, que corresponde ao sujeito no sintagma verbal, é introduzido pela preposição de.

Como resultado deste processo de nominalização, é também possível que o nome peça dois argumentos, que resultam da estrutura argumental do verbo. É o que acontece na passagem de (3) para (4):

(3) «O João elogiou a Rita.»

(4) «o elogio do João à Rita»

Uma vez que o nome só admite complementos à sua direita, o sujeito verbal é colocado imediatamente a seguir ao nome elogio, sendo introduzido pela preposição de («do João») e o complemento direto verbal é colocado a seguir, sendo, neste caso, introduzido pela preposição a («à Rita»).

Neste processo de nominalização, uma das questões que se pode colocar está relacionada com a seleção da preposição que introduz cada um dos complementos do nome. Neste âmbito, como se disse, o sujeito verbal converte-se normalmente num nome introduzido por de. A...

Pergunta:

Peço, por favor, que me esclareçam a seguinte dúvida.

Por que razão, na frase «Desde os Romanos aos Mouros, aqui se encontram diferenças, se debatem ideias, se cria», o pronome pessoal se surge antes do verbo?

Transcrevo, de seguida, o texto completo de onde a frase acima foi retirada:

«Quem és tu, Coimbra? Coimbra, a cidade do conhecimento! Na verdade, desde há séculos que a cidade é um ponto de encontro entre culturas. Desde os Romanos aos Mouros, aqui se encontram diferenças, se debatem ideias, se cria. Depois de tornada cidade universitária – a única em Portugal durante 400 anos – foi também lugar de polémicas e de paixões. O seu Fado, triste e melancólico, fala desta cidade como porto de encontros e de partidas. E o rio Mondego traz à cidade a água profunda que vem da Serra da Estrela e atravessa a cidade até chegar ao mar na Figueira da Foz.»

Agradeço, antecipadamente, a vossa disponibilidade.

Resposta:

Os advérbios locativos, quando surgem antes do verbo, poderão ou não atrair o pronome átono para posição proclítica (colocação antes do verbo). A diferença de comportamento sintático está associada ao valor que o advérbio expressa.

Assim, quando os advérbios estão focalizados, usa-se a posição proclítica, como em (1):

(1) «Aqui se faz o melhor pão da região.»

Como explica Martins, «[a]s frases em que ocorrem os advérbios locativos focalizados podem […] ser parafraseadas por ‘[aí/ali/… é que’ ou por ‘só [ai/ali/…] e não noutro lugar’»1. Neste caso, a frase veicula a ideia de que o espaço é exclusivo, destaca-o entre outros lugares onde também se faz pão. Deste modo, a frase (1) equivale a

(1a) «Aí nesse lugar, e em nenhum outro, é que faz o melhor pão da região.»

Os advérbios locativos em posição pré-verbal associam-se à ênclise quando estão topicalizados. Como explica Martins, «[n]esta situação, ou o advérbio locativo tem um antecedente discursivo, interpretando-se como um locativo anafórico ou a referência locativa definida resulta da sua natureza deítica»2.  

(2) «A padaria ficava no final da rua. Ali fabricava-se pão de centeio.»

Neste caso, o advérbio não admite a focalização «aí/ali/… é que». Na frase apenas se afirma que naquele local se fabrica pão de centeio.

Se atentarmos na frase apresentada pela consulente, vemos que a sua interpretação é dúbia:

(3) «Coimbra, a cidade do conhecimento! Na verdade, desde há séculos que a cidade é um ponto de encontro entre culturas. Desde os Romanos aos Mouros, aqui se encontram diferenças, se debatem ideias, se cria.»

Considerando apenas o ex...

Pergunta:

Creio ter aprendido numa aula de Português que, caso se faça uma enumeração após um determinante possessivo, este deverá surgir no plural.

Assim, será mais adequado escrever «os meus tempo e dinheiro» do que «o meu tempo e o meu dinheiro». Isto confirma-se?

Isto parece colocar um problema caso a enumeração tenha substantivos de géneros diferentes, provocando discordância em género. Será alguma das formas seguintes possível?

«Os meus disponibilidade e interesse», ou «as minhas disponibilidade e interesse»?

Obrigado.

P.S. Aproveito para perguntar se as vírgulas estão bem aplicadas na primeira frase.

Resposta:

Neste contexto, dever-se-á optar pela forma singular do determinante:

(1) «o meu tempo e dinheiro»

Quando temos dois nomes coordenados antecedidos de determinante, a opção mais comum é a de omitir os determinantes que incidem sobre o segundo nome:

(2) «o meu amigo e (o meu) companheiro»

Nestes casos, o determinante que acompanha o primeiro nome concorda com ele em género e número, veiculando-se a interpretação de que os determinantes também incidem sobre o termo coordenado1.

Relativamente ao uso das vírgulas na primeira frase, poderemos dizer que estas estão bem aplicadas uma vez que isolam a oração subordinada condicional que intercala a oração subordinada completiva2.

Disponha sempre!

  

1. Para mais informações, cf. Raposo e Brito in Raposo, Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2504-2506.

2. Não esqueçamos, porém, que muitos usos da vírgula são de natureza estilística. A este propósito, consulte-se também os textos relacionados.

Pergunta:

Na frase do conto "A aia" «Assim tumultuosamente os homens de armas lançavam a nova cruel», se substituirmos por um pronome a expressão «a nova cruel», a frase fica com o pronome antes ou depois do verbo?

«Assim tumultuosamente os homens de armas lançavam-na», ou «Assim tumultuosamente os homens de armas a lançavam»?

Penso que, devido ao advérbio assim, o pronome se coloca antes da frase, mas estou com dúvidas.

Resposta:

Advérbios como assim poderão desencadear próclise, atraindo o pronome clítico para antes do verbo, ou associar-se à ênclise, situação em que o pronome se mantém depois do verbo.

Martins refere, a propósito de assim, que se deve distinguir entre o advérbio de modo, que induz próclise (1), e o advérbio conectivo, de valor conclusivo, que se constrói com ênclise (2)1:

(1) «Falou com todos. Assim os pacificou.» (= pacificou os ânimos)

(2) «Fez as leituras em casa. Assim, ajudou-me no trabalho.»

A identificação da natureza do advérbio na frase apresentada exige que se recupere parte do contexto da frase em questão:

(3) «O corpozinho tenro do príncipe lá ficara também, envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado!... Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas – quando a rainha, deslumbrada, com lágrimas entre risos, ergue nos braços, para lho mostrar, o príncipe que despertara.» (Eça de Queirós, A aia.)

No segmento em questão, o narrador afirma que a novidade cruel era lançada daquela forma /com aquelas palavras. Esta interpretação, a ser exata, leva a que se considere assim um advérbio de modo, com função de modificador do grupo verbal (e não um advérbio conectivo). Isto implica que o advérbio induz próclise:

(4) «Assim tumultuosamente os homens de armas a lançavam .»

Disponha sempre!

  

1. Martins in Raposo, Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2262.