Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Eles ficaram na padaria porque chovia», ou «Eles ficaram na padaria porque choveu»?

Qual das duas orações está de acordo com a gramática normativa?

Talvez ambas?

Resposta:

Ambas as frases estão corretas, embora tenham sentidos diferentes devido ao valor aspetual gramatical associado aos tempos verbais selecionados.

Na frase transcrita em (1), o verbo chover, flexionado no pretérito imperfeito do indicativo, traduz um valor aspetual gramatical imperfetivo, ou seja, descreve-se uma situação que é apresenta no seu decurso, sem considerar os limites inicial ou final:

(1) «Eles ficaram na padaria porque chovia.»

Neste caso, a chuva poderá ter começado antes da ação da oração subordinante («Eles ficaram na padaria») e prolongar-se-á para lá desta situação. Podemos inferir que a chuva é o motivo para eles permanecerem na padaria.

Na frase (2), o verbo chover encontra-se flexionado no pretérito perfeito do indicativo e traduz um valor aspetual gramatical perfetivo, ou seja, de situação concluída:

(2) «Eles ficaram na padaria porque choveu.»

A frase pode, assim, indicar que a chuva terá terminado antes de eles ficarem na padaria, mas alguma consequência da chuva os impediu de sair da padaria.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na sequência «e crianças-rapazes pedindo», a ação é apresentada com valor aspetual imperfetivo ou iterativo?

Grata.

Resposta:

A falta de contexto não nos permite analisar de forma precisa o valor aspetual da oração apresentada.

Recordemos que o valor aspetual resulta muitas vezes da interação entre o verbo, o tempo em que se encontra flexionado e outros elementos presentes na frase ou no próprio contexto.

Assim, relativamente ao segmento frásico apresentado, apenas poderemos dizer que, por ter como núcleo um verbo flexionado no gerúndio, exprime, por defeito, um valor aspetual gramatical imperfetivo porque o gerúndio associa-se à ideia de situação inacabada.

Este valor gramatical poderá combinar-se com um valor habitual em situações como:

(1) «E, habitualmente, víamos os rapazes pedindo.»

Já em frases como (2), o imperfetivo surge combinado com o valor iterativo:

(2) «Durante o mês que lá estive, vi os rapazes pedindo na esquina.»

Para mais informações, sugere-se a consulta dos textos relacionados.

Disponha sempre!

Pergunta:

Encontramos a resposta a esta questão («Trocar ou destrocar?») aqui no Ciberdúvidas, que não deixa qualquer dúvida.

No entanto, há o caso de pedirmos a alguém para trocar moedas pequenas, trocos, por uma nota. Os trocos deixam de o ser.

Neste caso é aceitável, ou melhor, é correto usar a expressão «Destroca-me estas moedas?»?

E já agora (se possível questionar num mesmo post), a repetição daqueles pontos de interrogação acima é aceitável?

Resposta:

O verbo trocar tem o sentido de «desfazer uma troca» (Dicionário Priberam), pelo que o seu uso é correto numa frase como a que se apresenta em (1):

(1) «Tinha trocado os sapatos que recebeu no Natal, mas, como também não gostou destes, foi destrocá-los.»

Só num contexto informal ou familiar é possível usar o verbo destrocar como sinónimo de trocar e, portanto, com o valor de «fazer a troca» (Dicionário Priberam).

Pelo que ficou exposto, no contexto referido pelo consulente, deve usar-se o verbo trocar:

(2) «Troca-me estes trocos por uma nota.»

Para evitar a cacofonia que se cria entre trocar e trocos, é possível recorrer, por exemplo, ao nome moedas.

Quanto à utilização da pontuação, é possível o uso de dois pontos de interrogação seguidos porque eles estão associados a segmentos textuais distintos: um marca o valor interrogativo da pergunta «Destroca-me estas moedas?», sendo seguido de aspas; outro marca o valor interrogativo da frase onde se encaixa o segmento anterior, o que permite interpretar a frase na sua globalidade como uma questão.

Disponha sempre!

Usos do pronome clítico
As formas -lo(s)/-la(s)

A forma que o pronome clítico assume quando se associa a verbos terminado em -s- dá matéria ao apontamento da professora Carla Marques no programa Páginas de Português, da Antena 2. 

Pergunta:

Na CNN Portugal li a frase seguinte : «Tínhamos medo de viajar e sermos atingidos...»

Podia dizer-me como é que o escritor decide usar o segundo verbo no infinitivo pessoal ("sermos", e não "ser"), enquanto o primeiro verbo está no infinitivo ("viajar", e não "viajarmos") ?

Resposta:

Em casos desta natureza é aconselhável a seleção da mesma opção nas duas orações coordenadas. Acrescente-se que o uso do infinitivo não flexionado ou do infinitivo flexionado é relativamente opcional em contexto de subordinação nominal. Note-se que, neste caso, as orações são subordinadas ao nome medo.

Assim, na frase em análise, poderá optar-se pelo infinitivo não flexionado (1) ou pelo infinitivo flexionado (2):

(1) «Tínhamos medo de viajar e ser atingidos.»

(2) «Tínhamos medo de viajarmos e sermos atingidos.»

Nestas situações, o importante será manter a coerência na escolha de uma forma ou de outra, desde que o sujeito semântico das orações seja o mesmo.

Disponha sempre!