Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Recentemente, eu li uma definição que mexeu comigo. Aprendi a minha vida toda que um verbo de ligação mais um predicativo automaticamente pedem um sujeito (assim está na gramática de Pasquale e Ulisses).

Porém... o mundo não é feito apenas de 'coisas' boas e fáceis!

Celso Cunha e Lindley Cintra usaram uma definição que vai totalmente de encontro ao meu aprendizado:

«Nas orações impessoais o verbo ser concorda em número e pessoa com o predicativo.»

Repararam?

Oração sem sujeito+verbo de ligação+predicativo.

Ou seja, na frase «são 14 horas», eu tenho um predicativo sem sujeito?

Obs.: Luft também coloca predicativos sem sujeito em seu Dicionário Prático de Regência Verbal.

Desde já agradeço a enorme atenção que sempre tiveram com «curiosos da Língua Portuguesa».

Resposta:

Frases como a que se apresenta em (1) correspondem a construções nas quais o verbo ser procede a uma localização temporal:

(1) «São catorze horas.»

Em frases desta natureza, o momento localizado (sobre o qual se faz a localização temporal) corresponde ao próprio momento de enunciação. Por essa razão, embora estes exemplos normalmente não incluam um constituinte com a função de sujeito, «são implicitamente interpretados como asserindo algo sobre o momento ou intervalo deiticamente determinados (p.e., o ‘agora’ a enunciação, ou outro intervalo dêitico mais lato como ‘hoje’)»1..

No que se refere à concordância, neste tipo de construções o verbo ser concorda em número com o constituinte que desempenha a função de predicativo do sujeito2:

(2) «São duas horas.»

(3) «É uma da tarde.»

Disponha sempre!

 

1. Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1328 – 1329.

2. Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2482 – 2483.

Pergunta:

Vendo há dias um programa sobre as médicas e sufragistas Carolina Beatriz Ângelo e Adelaide Cabete, uma das investigadoras ouvidas usou o termo «neutro universal», referindo-se a questões levantadas na época sobre cargos e funções em que prevalecia o masculino.

Como desconheço o termo e não encontrei qualquer registo/explicação, fica a pergunta: «neutro universal» é um conceito linguístico?

Os meus agradecimentos antecipados.

Resposta:

Não conseguiremos apurar com rigor a intenção do que ficou dito no programa em questão.

Não obstante, poderemos dizer que a expressão «neutro universal» é usada nalguns contextos gramaticais para descrever o uso do género masculino como forma que abrange tanto o masculino como o feminino.

Este conceito tem vindo a ser discutido em contexto de propostas para a linguagem inclusiva onde se tem avançado a adoção de um género neutro que possa funcionar como o «novo neutro universal».

É possível que, no contexto de profissões tipicamente ocupadas por pessoas do género masculino, esta expressão possa ter sido usada em tom crítico para mostrar a importância de mulheres como as referidas na pergunta para questionar esta ordem estabelecida.

Disponha sempre!

A vírgula nas relativas
A diferença entre relativas explicativas e relativas restritivas

Na sua crónica divulgada no programa Páginas de Português, da Antena 2, a professora Carla Marques reflete sobre o uso da vírgula com orações relativas. 

Pergunta:

É correto dizer "acabei de começar"?

Resposta:

A aceitabilidade da expressão estará dependente do valor que se atribui aos verbos que dela fazem parte.

A construção em causa poderá ser interpretada como composta por um verbo auxiliar (acabar (de)) e por um verbo principal (começar) ou poderá ser considerada uma construção elíptica, na medida em que se omite o verbo principal, que indicará a situação visada. A frase a considerar poderá, deste modo, equivaler à que apresentamos em (1):

(1) «Acabei de começar a ler este livro.»

Nesta segunda possibilidade, temos, assim, uma frase que inclui um verbo principal (ler) e dois verbos auxiliares aspetuais (acabar (de) e começar (a)1).

Recorde-se que como verbo auxiliar acabar (de) pode desencadear duas leituras2:

(i) uma leitura aspetual em que aponta para a finalização de uma situação:

     (2) «Acabou de ler este livro.»

(ii) uma leitura temporal, que indica que a situação ocorreu num intervalo de tempo anterior e muito próximo do momento de enunciação:

     (3) «O João acabou de chegar.»

Por seu turno o verbo começar (a), na qualidade de auxiliar, assinala o início de uma situação3:

(4) «O João começou a ler este livro.»

Poderemos ainda acrescentar que, quando dois verbos auxiliares se combinam numa frase, a organização entre eles deve respeitar a ordem verbo auxiliar temporal + verbo auxiliar aspetual, tal como acontece em (5):

(5) «o João vai [auxilia...

Pergunta:

No meu trabalho escrevo bastante, e tenho vindo a deparar-me com um dilema, cuja resolução não me agrada.

Aprendi que o sujeito é de indicação obrigatória em qualquer frase, mas, francamente, esse cuidado não só me parece desnecessário como, no mesmo parágrafo, pode dificultar o ritmo da leitura e da motivação em ler. Poderiam esclarecer?

Obrigada.

Resposta:

Em português, ao contrário do que acontece noutras línguas, não há necessidade de explicitar o sujeito em todas as frases ou orações. Tal acontece porque o português é «uma língua de sujeito nulo, ou seja, uma língua na qual um sujeito pronominal pré-verbal não tem necessariamente realização fonética»1.

Assim, as frases abaixo são perfeitamente gramaticais em português:

(1) «O João comprou um livro e [-] começou a lê-lo imediatamente porque [-] gosta imenso deste autor que [-] conheceu numa feira do livro. E foi assim que, no próprio dia, o [-] leu na íntegra.»

Como se pode observar, o símbolo [-] indica os locais da frase onde poderia surgir explicitamente um sujeito. Tal não é, todavia, necessário porque este fica subentendido, sendo recuperado por uma rede de ligação entre os segmentos da frase que permite apontar para o referente inicial («o João») e tomá-lo como o sujeito de todos os verbos presentes nas frases. Este processo recebe o nome de coesão gramatical referencial.

Este funcionamento específico da língua portuguesa evita as redundâncias e permite a construção de frases menos pesadas e repetitivas. Por essa razão, em muitas situações, é mesmo fortemente aconselhável que se recorra ao sujeito nulo na construção frásica.

Disponha sempre!

 

1. Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 356, caixa [7].