Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Li na Gramática do Português de autoria de Clara Amorim e Catarina Sousa que o advérbio não pode modificar grupo verbal (1) ou frase (2) e que, neste último caso, «o advérbio não forma unidade sintática com o verbo».

(1) «Não desvies a conversa, Armando.»

(2) «Não quero sorriso de esperança.»

Para ser sincero, não dei por nenhuma diferença no que diz respeito à função sintática de não.

Podem-me clarificar esse assunto?

Obrigado.

Resposta:

Não consigo identificar a passagem da gramática referida onde essa afirmação é feita ou associar os exemplos apresentados à referida análise .

Não obstante, poderemos aqui recordar que a análise do advérbio de negação não normalmente aponta dois aspetos dominantes1:

(i) este advérbio, sendo um marcador de negação frásica, pode incidir sobre o grupo verbal, como acontece em (1)

(1) «O João não fez o trabalho.»

(ii) não pode funcionar como marcador da negação de constituintes, incidindo sobre itens lexicais específicos da frase, o que fica patente em (2), onde não nega apenas o substantivo pão, não tendo escopo sobre os restantes elementos da frase:

(2) «Ele come não pão mas fruta.»

As frases apresentadas pelo consulente correspondem ao primeiro caso aqui descrito.

Disponha sempre!

  

1. Para mais informações, cf. Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa. pp. 769-793.

Pergunta:

Em todas as gramáticas que consultei, as orações substantivas sempre estão depois das principais. Isso é uma regra?

Não posso colocar a subordinada substantiva antes da principal? Li uma resposta do Ciberdúvidas em que se diz que podemos ter as objetivas antes das principais; mas são apenas essas ou todas substantivas?

Na minha visão, podemos ter no mínimo a maioria, já que: conseguimos deslocar os objetos diretos, os indiretos, os sujeitos...

Mas sabemos que apenas a visão de um curioso não conta. Por isso peço ajuda aos Senhores.

Desde já agradeço a atenção.

Resposta:

As orações subordinadas substantivas poderão ser colocadas antes do verbo.

Se se tratar de uma oração subordinada substantiva relativa, ela poderá surgir antes do verbo desempenhando a função sintática de sujeito. Esta é a sua posição mais frequente:

(1) «Quem lê muito tem outro conhecimento do mundo.»

A oração «Quem lê muito» pode, neste contexto ser substituída pelo pronome pessoal ele:

(2) «Ele tem outro conhecimento do mundo.»

Se se tratar de uma oração subordinada substantiva completiva com função de sujeito, ela poderá, nalguns casos, ser colocada antes do verbo, como se verifica em (3):

(3) «Que faça muito frio é algo esperado no inverno.»

Também neste caso é possível substituir a oração por um pronome, neste caso o pronome isto:

(4) «Isto é algo esperado no inverno.»

As orações subordinadas substantivas completivas têm, todavia, tendência a ser colocadas depois do verbo, tal como se verifica em (5):

(5) «É aborrecido que eles tenham faltado.»

Quando a oração subordinada substantiva completiva tem função do complemento direto (é objetiva), esta surge habitualmente depois do verbo. Não obstante, em condições particulares pode ser colocada antes do verbo. O exemplo seguinte é apresentado por Bechara:

Pergunta:

Qual é que está correto?

a) «Desculpe o atraso» ou «Desculpe pelo atraso»?

b) «Desculpe o atraso do meu trabalho» ou «Desculpe pelo atraso do meu trabalho»?

Obrigadíssima!

Resposta:

As duas formas estão corretas.

O verbo desculpar admite a construção com complemento direto, como em (1) ou (2):

(1) «Desculpe o atraso.»

(2) «Desculpe o atraso do meu trabalho.»

Desculpar admite também a construção com complemento oblíquo, como em (3) ou (4):

(3) «Desculpe pelo atraso.»

(4) «Desculpe pelo atraso do meu trabalho.»

O verbo desculpar tem uma particularidade: pode ser construído com um complemento direto com natureza humana:

(5) «Desculpe o João pelo atraso.»

Todavia, se se preferir uma construção que envolva um complemento direto e um indireto, o constituinte com natureza humana terá de desempenhar a função de complemento indireto (6), não sendo aceitável que ele funcione com complemento direto1:

(6) «Desculpe o atraso ao João.»

(7) «*Desculpe o João ao atraso.»

Disponha sempre!

 

*assinala a inaceitabilidade da frase.

 

1. Para mais informação, leia-se esta resposta de Edite Prada.

Pergunta:

«Ninguém entrará cá.»

Qual o valor modal da frase, certeza ou proibição?

Resposta:

Os dois valores modais são possíveis. Todavia, sem um contexto para a frase, não poderemos determinar qual o valor modal associado à frase.

Recordemos que a modalidade veicula a atitude do locutor relativamente ao conteúdo do seu enunciado.

Assim, o locutor poderá, por exemplo, em conversa com um amigo, ter o propósito de dar a conhecer o sistema de segurança de um local. Nesse sentido, elogiando a capacidade do dito sistema poderá afirmar que ele é inviolável por meio da frase (1):

(1) «Ninguém entrará cá.»

Esta afirmação será equivalente a (2)

(2) «Tenho a certeza de que ninguém entrará cá.»

Neste caso, a sua intenção é a de veicular a modalidade epistémica (relativa ao saber) com um valor de certeza, pois ele pretende garantir que o espaço está seguro.

Noutro contexto, o locutor poderá, por exemplo, ter a intenção de explicitar as regras de funcionamento de um edifício aos visitantes. Nesse sentido, poderá informar que uma dada sala é interdita, por meio da afirmação apresentada em (1). Nesse caso, a sua intenção é a de veicular uma modalidade deôntica (que age sobre o interlocutor) com o valor de proibição. A sua afirmação será, então, equivalente a (3):

(3) «Estão proibidos de entrar cá.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Sobre a semântica do verbo levar, e tendo em conta a frase abaixo, perguntava-vos se o verbo destacado é possível (enquanto sinónimo de "oferecer"):

«A família leva-nos a aventuras incríveis.»

Obrigado.

Resposta:

Esse sentido é possível de forma indireta.

Levar é um verbo de movimento, que tem como significado de base a ideia de «transportar algo a algum lugar» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Não obstante, este verbo pode também veicular a ideia de «dar acesso a» ou «obter como recompensa». Neste sentido, a frase apresentada pelo consulente pode ser usada como sendo equivalente a

(1) «A família dá-nos acesso a aventuras incríveis.»

(2) «A família oferece-nos como recompensa aventuras incríveis.»

Estes usos estão próximos do valor do verbo oferecer.

Disponha sempre.