Na frase «Felizmente que ele chegou» qual a natureza da oração «que ele chegou»?
Nesta frase, o advérbio felizmente é acompanhado por um complemento, que, neste caso, é uma oração completiva introduzida pela conjunção completiva que (note-se que este que, nalguns quadros teóricos, é considerado não uma conjunção, mas antes um complementador, que introduz os complementos do verbo ou de outras palavras que os peçam).
Parece um pouco estranho afirmar que os advérbios podem pedir um complemento porque, normalmente, a maioria dos advérbios surge isoladamente na frase. No entanto, há alguns advérbios que se constroem com complementos que, como o nome indica, lhes completam o sentido. Este é o caso de alguns advérbios terminado em -mente, que se formaram a partir de adjetivos. Uma vez que derivam de um adjetivo, estes advérbios herdam os complementos que o adjetivo tinha. Ora vejamos um exemplo: o adjetivo relativo pede um complemento introduzido pela preposição a, como se observa em «relativo ao assunto»; o advérbio relativamente, que deriva do adjetivo relativo, também vai pedir um complemento introduzido pela preposição a, como podemos ver na construção «relativamente ao assunto».
Para além deste caso, há também advérbios avaliativos que podem selecionar para complemento uma oração. É o que acontece com advérbios como felizmente («Felizmente que ele chegou), obviamente («Obviamente que ele já chegou») ou claramente («Claramente que ele chegou»).
Deste modo, concluímos que alguns advérbios podem, com efeito, ser complementados por uma oração completiva introduzida por que.
Áudio disponível aqui:
[AUDIO: Carla Marques_Felizmente que]
N. E. (22/11/2023) – A divulgação deste apontamento no mural do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa no Facebook motivou o seguinte comentário do gramático brasileiro Fernando Pestana:
«Se me permitem outra análise, o vocábulo que é classificado como «partícula expletiva» nesse caso, segundo pude consultar nestes gramáticos: Napoleão Mendes de Almeida, Luiz Antonio Sacconi, Evanildo Bechara, Domingos Paschoal Cegalla, etc.
Desse modo, a oração seria classificada como absoluta, ou seja, a frase passaria a ser classificada como um período simples.
Dito isso, uma dúvida: se advérbios terminados em -mente seguidos de que, em frases como «Certamente que ela voltará hoje», forem termos a exigir complemento em forma de oração, a mesma análise valerá para os casos abaixo, formados por advérbio/locução adverbial + que?
– Quase que ela desmaia.
– Como que vocês fazem isso comigo?
– Com certeza que serão eleitos.
– Desde cedo que ela está aqui.
– Felizmente que ele chegou.
– Quase ela desmaia.
– Como vocês fazem isso comigo?
– Com certeza serão eleitos.
– Desde cedo ela está aqui.
– Felizmente ele chegou.»
A este comentário, respondeu a autora do apontamento, Carla Marques:
«Estamos cientes de que existem interpretações, feitas num quadro tradicional, que consideram que uma partícula expletiva. Não é, todavia, este o nosso entendimento. Nesta interpretação, seguimos de perto a análise proposta por Raposo et al., na sua Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, onde se afirma que existem «cinco subclasses de advérbios que selecionam complementos (nos exemplos a seguir, sublinham-se os complementos): (i) alguns advérbios em -mente que preservam o complemento selecionado pelos adjetivos de que derivam (cf. paralelamente à avenida); (ii) advérbios como dentro, fora, perto, chamados advérbios relacionais, que se combinam com uma preposição, formando uma locução prepositiva (cf. fora da estação [...]); os advérbios mais, menos e tão/tanto, em construções comparativas (cf. o Pedro é mais alto do que a Maria); alguns advérbios avaliativos que podem ocorrer como predicadores selecionando um complemento oracional (cf. felizmente que a Maria já voltou); (v) alguns advérbios que funcionam como conjunções subordinativas adverbiais i. e., que selecionam complementos oracionais e formam juntamente com esses complementos uma oração subordinada adverbial (cf. [sempre que a Maria espirra], o Pedro tosse). [...] Tal como acontece com nomes e adjetivos, os complementos não oracionais dos advérbios são obrigatoriamente introduzidos por uma preposição, ou seja, são sintagmas preposicionais (cf. o carro estava perto da estação vs. *o carro estava perto a estação).» (p. 1584, destaque nosso).
Assim, numa perspetiva sintática, consideramos que alguns advérbios podem ocorrer em posições distintas. No caso do advérbio felizmente, este pode surgir como modificador de frase (numa posição periférica) ou ser predicador, pedindo um complemento (neste caso, oracional).
Neste quadro, também se considera que o advérbio quase pode ser combinado com que (Idem, Ibidem, p. 1665), o mesmo sucedendo com a preposição desde (com valor espacial e temporal) (Idem, Ibidem, p. 1680), tal como acontece com outros advérbios que surgem em construções que estão já mais cristalizadas na língua (ainda que, assim que, logo que, sempre que, etc.) (Idem, Ibidem). O mesmo se aplica à locução «com certeza», equivalente a certamente.
O caso da frase interrogativa «Como que vocês fazem isso comigo?», é diferente. No português europeu, dir-se-á «Como é que vocês me fazem isso?» Neste caso, «é que» é sinal de estrutura clivada, a qual permite manter a ordem Sujeito-verbo numa frase interrogativa (Idem, ibidem, p. 2546).»
Apontamento incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 19 de novembro de 2023.