Se as línguas que se falam em Espanha parecem despertar pouco interesse em Portugal, não deixa (ainda) de surpreender como a língua portuguesa é tema muito presente numa região vizinha de Portugal e que faz parte de Espanha. Trata-se da Galiza, onde há muito se mantém aceso um debate à volta da relação do galego com o português e das suas implicações culturais e políticas, talvez para surpresa do grande público português. Assim se pode enquadrar a publicação deste conjunto de estudos e ensaios críticos que fazem a história linguística da Galiza ao longo dos últimos cem anos, período em que se vai lutando pela normalização e normativização do galego, apesar das vicissitudes políticas, sociais e culturais do Estado espanhol. Os autores são Elias J. Torres Feijó (n. 1964), professor na Universidade de Santiago de Compostela (USC), e Roberto Samartim (n. 1971), docente na Universidade da Corunha. Ambos são destacados investigadores no campo dos estudos culturais, em especial, das relações Galiza-Portugal e da codificação da língua vernácula galega; e ambos alinham com o reintegracionismo, defendendo, portanto, que, com o português, o galego mantém uma afinidade profunda que deve ser realçada como estratégia de afirmação, resistência e sobrevivência no contexto da pressão do castelhano (também conhecido como língua espanhola).
Esta edição da Através, editora pertencente à Associação Galega da Língua (AGAL), adota uma ortografia que sem hesitação se dirá que é a do português, embora a escrita confirme a declaração da ficha técnica, num ato simultâneo de integração na língua portuguesa e de afirmação identitária neste espaço linguístico: «Este livro está escrito numa variedade galega do português». A obra compreende uma introdução e dez capítulos, formando estes um conjunto de comunicações e artigos mais antigos, fruto da atividade académica e cívica dos autores; inclui-se ainda um glossário, que elenca a terminologia mobilizada na interpretação e crítica da visão histórica dos temas abordados.
Na introdução, importa assinalar que se situa o livro no contexto da Rede Galabra, criada em 1998 na USC como grupo de estudos da cultura que, com «bases metodológicas sustentadas «nas teorias sistémicas e sociológicas» (p. 11), conta com projetos que têm por objeto de estudo «o relacionamento intercomunitário galego-lusófono […] com foco na planificação e ubiquação cultural da comunidade galega e […] com interesse no processo de codificação da língua da Galiza» (p. 12).
Dos capítulos subsequentes, os dois primeiros e os três finais são assinados por Torres Feijó, e os cinco de permeio são da autoria de Samartim. Embora possa ter uma leitura salteada e em separado, reconhece-se neste conjunto uma ordenação temática cronológica, levando o leitor do interesse galeguista por Portugal nos princípios do séc. XX à atualidade. Assim, o primeiro capítulo «visa fixar alguns períodos fundamentais da fabricação galeguista de ideias-força a respeito de Portugal» (p. 21), tendo em conta o impacto do pensamento de figuras portuguesas, de Teófilo Braga (1843-1924) a Rodrigues Lapa (1897-1989) nos meios intelectuais, de que se salienta nos anos 20 o grupo congregado em redor da revista Nós (1920-1925). No segundo capítulo, fala-se da repressão enfrentada pelo galeguismo e pelo uso do galego no período franquista, enquanto o terceiro, quarto e quinto capítulos são dedicados a aspetos da militância cultural e linguística galega durante o tardofranquismo, entre os quais se destaca a fundação, em Vigo, da Editorial Galaxia (1950). O capítulo VI versa sobre a iniciativa que levou à institucionalização do Dia das Letras Galegas, comemorado a 17 de maio. Os restantes capítulos dizem respeito à história mais recente do galego, desde a oficialização da norma seguida pela administração autonómica – a muito criticada Norma ILG-RAG (Instituto da Língua Galega e Real Academia Galega) – até à (alarmante) perda de estatuto da língua na construção da identidade galega, consequência, segundo Torres Feijó, de uma política linguística desadequada e vulnerável à contestação de movimentos como Galicia Bilingüe.
Observe-se que as cerca de 350 páginas deste volume nem sempre parecem acessíveis à leitura, dado o número de termos especializados que remetem para teorias da cultura e metodologias associadas. Felizmente, o glossário apresentado no final franqueia aos mais interessados e curiosos a indispensável orientação para ajuizar da argumentação apresentada, sempre em defesa da legitimidade da língua nativa da Galiza.
Enfim, estamos perante um livro que, sem deixar de afirmar o seu posicionamento no debate, dá ao leitor – em especial ao português – muita informação relevante sobre os bastidores da construção normativa do galego. Ao mesmo tempo, apela a uma maior atenção de todos – galegos e não só – para um património linguístico precioso que urge conhecer, valorizar e reanimar.
Este é um espaço de esclarecimento, informação, debate e promoção da língua portuguesa, numa perspetiva de afirmação dos valores culturais dos oito países de língua oficial portuguesa, fundado em 1997. Na diversidade de todos, o mesmo mar por onde navegamos e nos reconhecemos.
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