D. Francisco Manuel de Melo (1608-1668), um dos autores mais notáveis do século XVII literário português, deixou por publicar a Feira dos Anexins, que encontrou edição em 1875 por iniciativa de Inocêncio Francisco de Silva (1810-1876), o conhecido autor do Dicionário Bibliográfico Português. Uma segunda edição, de 1916, «não é mais, salvo raríssimas e pouco significativas variantes, do que uma reimpressão da primeira edição» (p. 21). Em 2021, numa nova edição a cargo de Maria Sofia Silva Santos, que fixou o texto e escreveu a nota introdutória e as notas de rodapé, a editora Guerra & Paz recupera esta obra que reúne ditos e trocadilhos seicentistas, muitos deles atestações precoces de usos que continuam cheios de vitalidade na língua hodierna.
Escrito sob pseudónimo humorístico – Doutor Esquadrinha Tudo –, o livro desenvolve-se como uma coleção de textos formados pela sucessão de anexins, termo aqui utilizado na aceção de «dito sentencioso, provérbio ou máxima». Trata-se de um conjunto de nove grandes diálogos agrupados em duas partes e repartidos por subsecções subordinadas a temas («metáforas»). O todo fecha com uma terceira parte que abrange sete relatos («fábulas»).
Os diálogos da primeira parte incluem ditos e trocadilhos constituídos por metáforas fundadas em diferentes campos lexicais ligados à vida humana – do corpo à espiritualidade e das ações e gestos aos objetos de uso doméstico. Na segunda parte, os temas referem-se ao plano divino e espiritual, ao mundo animal e ao domínio abstrato. São conversas que se desenrolam com virtuosismo barroco, com interlocutores que se comprazem em réplicas contínuas, como se pode confirmar pelo seguinte exemplo, de um diálogo sujeito ao mote das mãos (p. 57; mantém-se a ortografia de 1945, seguida por esta 2.ª edição):
– Se você disser melhor anexins que eu, corto as mãos.
– Manso, que nesse jogo sou eu mão só, e nenhum de vocês me ganha por mão.
– Você entrou nestes Diálogos com uma atrás e outra à frente: todo o seu cabedal de chistes se pode apertar numa mão.
– Que importa que já os diz às manadas [às mãos-cheias]; e aquilo é ter mão para tudo.
–Para mim não terá ele mão, que eu hei-de ter mão pela minha parte.
– Mas que equívocos diz ele que, tomado o caso às mãos, não sejam também asneiras?
–Senhores, com as mãos erguidas lhes peço, não brinquemos de mãos, que às vezes das mãos escapa uma que é bofetada sem mãos; e a pedra, tanto que vai fora da mão, não tem remédio.
O jogo de palavras desta sequência com cerca de 400 anos evidencia, assim, expressões iguais ou semelhantes às expressões atuais como sejam «com uma mão atrás e outra à frente» («sem recursos») ou «ter mão» («controlar, ser perito»). Exibe-se, portanto, um espetáculo de destreza linguística a cada vez que se toma a palavra, para explorar a associação dos termos e frases anteriores num novo encadeamento. O mesmo dispositivo gera as fábulas da terceira parte, sugeridas por tópicos, na sua maioria, provenientes do campo lexical da alimentação e, afinal, pretexto para mais jogos associativos de linguagem.
Comparando com a 1.ª edição, acessível em documento digital no portal da Biblioteca Nacional de Portugal, a nova edição tem, sem dúvida, o enorme mérito de atualizar o texto, levando-o ao público não especializado. Reforçam este propósito o glossário (207-215) e uma secção final de textos para contextualização (pp. 219-236), entre eles o "Prefácio biográfico" que Camilo Castelo Branco escreveu para a edição de 1873 da famosa Carta de Guia de Casados do autor em apreço. Mas talvez tenha igual utilidade para breve mais outra edição, desta vez com um índice alfabético e remissivo das expressões idiomáticas contidas na obra, de modo a agilizar a consulta desta preciosa fonte documental da tradição fraseológica da língua portuguesa.
N. E. – Texto atualizado em 12/10/2021.
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