«...por mares nunca de antes navegados...» (Lus. 1,3)
3. O PORTUGUÊS DO BRASIL, LÍNGUA NACIONAL
3.1 Em diacronia
O estatuto de língua nacional coloca o português do Brasil, quanto ao status sócio-político, no mesmo nível que o português de Portugal, com a diferença fundamental de que o de Portugal é falado por mais de dez milhões de indivíduos e o do Brasil por mais de cem milhões.
Como o de Portugal, o português brasileiro se mantém numa área estável. Pode-se dizer que, em geral, as fronteiras linguísticas brasileiras coincidem com as políticas, se se quiser apagar da lembrança alguns pontos da fronteira sul, na qual avança o espanhol e o guarani, e pontos da fronteira amazônica em que diversas línguas indígenas se acantonam, refugiando-se de glotocídios iminentes.
Diferentemente do português de Portugal, convive com múltiplas minorias linguísticas que se concentram, principalmente, nos grandes centros urbanos, na região sul do país, áreas de imigração e nas áreas de populações indígenas remanescentes que mantêm as suas línguas.
O destino do português no Brasil se definiu nos meados do século XVIII, quando o Marquês de Pombal, por lei de 3 de maio de 1757, primeiro aplicada ao Pará e Maranhão e que depois se estende a todo o Brasil (CUNHA, 1981-92), dá início a uma nova política linguística e cultural na colônia americana, ao criar a primeira rede leiga de ensino, expulsos os jesuítas, ao estabelecer um ordenamento jurídico e administrativo em que a língua portuguesa passa a ser obrigatória, proscrevendo-se o uso de quaisquer outras línguas (HOUAISS, 1985-85). Esse fato histórico marcou definitivamente o fim de um processo que poderia ter definido outro destino linguístico para o Brasil.
Pode-se admitir, pelos dados da história brasileira que, durante os dois primeiros séculos de colonização, a língua do colonizador não se impôs como majoritária na terra que aos poucos efetivamente dominava.
Um rápido diagnóstico demográfico, baseado na síntese recente de António Houaiss, O português no Brasil (1985), é um argumento que sustenta a afirmativa anterior: no século XVI, na extensão ocupada do litoral brasileiro, viviam cerca de trinta mil brancos e mestiços integrados, um ou dois milhões de indígenas (em rápido processo de decréscimo populacional) e cerca de trinta mil negros (desde a África, já na viagem, desarticulados de seus grupos de origem, como se sabe, e por isso sem condições de manter efetivamente vivas as suas línguas de origem); já no século seguinte, a penetração interiorana avançava, a população branca e mestiça integrada subia para duzentos mil, a indígena ainda era significativa – um e meio milhão de habitantes – e a negra crescia para quatrocentos mil (HOUAISS, 1985: 44).
O instrumento de intercomunicação verbal principal nesse período histórico – se pode deduzir teoricamente e dados empíricos da história, embora rarefeitos, o confirmam – não seria a língua portuguesa, nem nenhuma das línguas africanas que aqui chegaram, pelo que antes se disse, mas sim uma língua geral de base indígena, com predomínio certamente da língua geral da costa, certamente marcada pela versão dos jesuítas missionários.
Sabe-se que não é o português a língua das reduções e missões jesuíticas, sabe-se que nas fazendas e no ambiente rural em geral (e o que seria urbano então no Brasil?), na casa dos senhores e dos outros era uma língua, não a portuguesa transplantada, mas com interferências certamente dela, que se constituía. De base indígena e com marcas africanas era aceita, entretanto, pelo poder leigo e da igreja, esta que foi a legitimadora da língua geral para a catequese e domínio dos indígenas nos primeiros tempos coloniais.
Confluindo no século XVIII, entre outros, fatores demográficos significativos tais como o avanço da população branca e mestiça integrada (cerca de quinhentos mil) e alcançando um milhão a população escrava negra, associados à nova política colonial pombalina, se definiu por aquele século o português como língua dominante.
Daí por diante a escolarização em português, o processo de urbanização crescente, a vinda da corte para o Brasil no início do século XIX, entre outros fatores, definiram a língua portuguesa como língua nacional e oficial, é óbvio que com suas marcas próprias, devidas não só a um processo natural de mudança intrínseca a qualquer língua, mas diferentemente marcada do processo de mudança do português europeu, não só pelas interferências das línguas indígenas como das línguas africanas que aqui se encontraram com o português.
A questão das derivas distintas do português europeu e do brasileiro espera um estudo sistemático, teoricamente fundamentado e comparativo.
3.2 Na sincronia
Contrapondo-se à diversidade interna das variantes europeia e brasileira da língua portuguesa, poder-se-ia afirmar, com base no conhecimento científico existente dessas duas variantes de um mesmo sistema linguístico, que a diversidade horizontal em detrimento da vertical pesa mais no português europeu, enquanto no Brasil o contrário se verifica.
Com outras palavras é o que diz Teyssier (1982: 79):
As divisões «dialectais» no Brasil são menos geográficas que sócio-culturais. As diferenças na maneira de falar são maiores, num determinado lugar, entre um homem culto e o vizinho analfabeto que entre dois brasileiros do mesmo nível cultural originários de duas regiões distantes uma da outra.
Consideremos, em primeiro lugar, a variação diatópica do português: Na sua recente gramática, Mateus et alii (1983: 20-21) seleciona quatro indicadores fonéticos que delimitam de uma maneira global essas duas variantes da língua portuguesa:
BRASIL PORTUGAL
• vogais átonas muito reduzidas; • vogais átonas pouco reduzidas;
• palatalizaçao do /t/ e do /d/ antes • inexistência dessas palatalizações;
de /i/ (tônico e átono);
• semivocalização do /l/ final de • velarização do /l/ final de sílaba e
sílaba e de palavra; de palavra;
• supressão ou velarização • realização como vibrante alveolar
do /r/ final. simples do /r/ final.
Se esses indicadores fônicos caracterizam e opõem o português de cá e o de lá do Atlântico, no seu todo, em cada uma das variantes consideradas é bastante distinta a configuração dialetal espacial.
Da portuguesa se pode falar com base em pesquisa sistemática de longa tradição como já mencionei; da brasileira, a informação é rarefeita e incipiente apesar de, desde a década de vinte, Antenor Nascentes ter iniciado com brilho e mérito os estudos de dialetologia no Brasil.
Seguindo de perto Cintra (1971), os dialetos regionais portugueses podem ser divididos em dois grandes grupos: os setentrionais e os meridionais. Esses dois subgrupos podem ser divididos e o são em áreas menores. Não entrarei aqui nos detalhes da classificação proposta pelo autor, mas quero deles destacar o fato de as isófonas que delimitam os dialetos nortenhos, no seu todo, dos sulistas, na totalidade, situarem no norte realizações fonéticas que não se encontram no Brasil, como:
• o sistema de quatro sibilantes típico do português medieval […] ou o sistema de duas sibilantes ápico-alveolares, enquanto nos meridionais vigora o de duas sibilantes predorso-dentais, como no Brasil;
• opõem-se em áreas do norte uma africada palatal surda a uma fricativa palatal surda (/ts/:/s/), enquanto no sul não ocorre a africada, mas apenas a fricativa, como no Brasil;
• em outras áreas do norte neutraliza-se a oposição /b/:/v/, que não se neutraliza nos meridionais, como também no Brasil;
• nos dialetos do norte mantêm-se os ditongos /ou/ e /ei/, enquanto no sul ambos se monotongam, tal como no Brasil.
Desses dados se depreende que, a partir dessas isófonas, coincidem ao nível fônico os dialetos meridionais do português europeu meridional com os dialetos brasileiros. Outras características do português meridional não foram ainda, pelo menos, documentadas no Brasil e não se encontram nos dialetos setentrionais de Portugal: nelas não me deterei, mas apenas menciono mudanças estruturais complexas no sistema vocálico em posição acentuada que caracterizam certas áreas do Alto Alentejo, do Sudeste da Beira Baixa e do Algarve. Por outro lado, as variantes brasileiras apresentam características que não só não se encontram no sul de Portugal, como as selecionadas por Mateus et alii mas que se opõem, como um todo, a Portugal. Além disso, no interior dos dialetos diatópicos brasileiros, há variantes específicas, que ainda não foram exploradas na sua totalidade. É o caso, só para exemplificar, da realização retroflexa do /r/, típica de certas áreas interioranas e de palatalizações de oclusivas, não apenas aquelas definidas nos itens selecionados por Mateus et alii.
As coincidências dos fatos acima referidos entre os dialetos meridionais portugueses e os brasileiros, em geral, têm sido explicadas por terem sido, ambos, áreas em que, encontrando-se portadores de dialetos regionais diferentes, apagaram-se identificadores típicos regionais, em proveito de um certo nivelamento fonético, num processo de mudança, que ocorreu em Portugal, durante a repovoação do Sul no período da Reconquista, do século XI ao XIII e que veio a repetir-se, de maneira análoga, no Brasil, ao se encontrarem falantes de dialetos portugueses vários.
O que sucedeu, de facto, foi que os colonos portugueses do Brasil elaboraram uma koiné por eliminação de todos os traços marcados dos falares portugueses do Norte e por generalizações das maneiras não marcadas do Centro-Sul.
Assim sintetiza Teyssier os fatos comuns destacados acima (1982: 78).
É um lugar-comum, em muitas obras que tratam do português brasileiro, destacar a sua «espantosa» (ou outro qualificador equivalente) unidade. Os que assim se expressam partem, em geral, de um confronto entre a dialetação geográfica portuguesa e a brasileira. Isso, que se pode chamar de julgamento estereotipado, não se fundamenta no conhecimento exaustivo da realidade linguística do Brasil que de resto ainda é insuficiente e fragmentariamente estudada.
O Atlas linguístico do Brasil, empresa, sem dúvida, hercúlea, esboçado por A. Nascentes, advogado por Serafim da Silva Neto, Celso Cunha, entre outros, só parcialmente se cumpriu e, aos poucos, sem uma coordenação metodológica que permita com sucesso um confronto sistemático de dados para que, com base nos fatos, se possa traçar fronteiras dialetais diatópicas no Brasil.
Antenor Nascentes propôs uma divisão dialetal brasileira em 1922, refeita por ele, posteriormente, em 1933 e 1953, e que nunca considerou definitiva, como, aliás, de outra maneira não poderia ser. […]
4. A DIVERSIDADE E A NORMA NO BRASIL DO FIM DO SÉCULO XX
Problema dos portugueses cultos no século XVI, muitos brasileiros, neste fim do século XX se debatem, e até mesmo se digladiam em torno do que seja a norma culta, a norma de prestígio, que deve conduzir o português brasileiro, enquanto «língua de cultura», língua oficial, base da cultura letrada, modelo para o ensino.
Parece já haver um razoável consenso, sobretudo nas gerações mais jovens, em torno do fato de a norma codificada na tradição gramatical de origem portuguesa, e fundada, sobretudo, na literatura de épocas passadas, não ser mais do que algo idealizado, ultrapassado já, e que nada, ou quase nada tem a ver com a norma ou as normas linguísticas em realização, que se entrecruzam na comunicação quotidiana com a dialetação diatópica e diastrática de milhões de brasileiros.
A intenção original do [...] projeto NURC [Projeto da Norma Urbana Linguística Culta] era exatamente a de observar, em cinco capitais brasileiras, como falam segmentos do nível mais alto de escolaridade, para, a partir daí, fundamentando-se nos dados, estabelecerem-se princípios para os usos linguísticos socialmente controlados, exigidos por instituições de nossa sociedade. Os fundamentos para uma prática, a partir do projeto mencionado, estão longe de estar prontos para uma adaptação pedagógica, que poderia partir de situações documentadas e permitiria, com certa margem de acerto, a condução do ensino, baseada, pelo menos, nas variedades existentes nos dialetos de segmentos denominados cultos, por seu grau de escolarização, de cinco capitais brasileiras.
Enquanto isso não se realiza, e não parece ser tarefa para já, discute-se com frequência, intensidade e paixão, em diversas instâncias da sociedade, os males, desmandos e até desgraças que sofre a língua portuguesa no Brasil. De uns anos para cá, associando-se sempre à crescente degradação dos sistemas de ensino, é essa uma das questões mais debatidas na sociedade brasileira.
Transferindo eu para a questão do Brasil de agora, o que Leonor Buescu coloca em relação à questão da língua portuguesa no século XVI, permito-me a última citação:
Em cada momento, a história cultural – e sociológica – do homem coloca a sua «Questão da Língua». Ora, a profunda relação que existe entre «Questão da Língua» e todas as «questões» que sacodem com maior ou menor força o edifício sociocultural é, certamente, a mesma profunda relação que existe entre a língua em si própria e os outros elementos da estrutura social. A língua é ou faz parte do aparelho ideológico, comunicativo e estético da sociedade que a própria língua define e individualiza. (1983: 218)
E no âmbito da língua portuguesa a «Questão da Língua» reveste várias «questões» com formas distintas; não será a mesma no Brasil, em Portugal, nas jovens nações da África?...
Independentemente dos questionamentos que sobre ela façam, a língua portuguesa viva e sã, e acredito que mais viva do que nunca, floresce no Brasil e se assume, não apenas na sua literatura forte, mas na voz a ser ouvida de cada brasileiro, qualquer que seja sua origem geográfica ou social. Com ela reforça-se a língua portuguesa no seu todo, lusitana ou africana.
Diversa e una, em momento de liberdade, revendo criticamente a coerção normativa homogeneizadora, dominante outrora, sempre a esgueirar-se por frestas acadêmicas, a aventura linguística que se definiu historicamente com Afonso Henriques no século XII continua o seu percurso e se afirma como uma das línguas mais usadas no mundo.
Salvador, 2 de Agosto de 1987
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