O livro O Português à Descoberta do Brasileiro (Guerra & Paz, 2022), de Fernando Venâncio, é um documento claro e incontornável relativo à história recente da língua portuguesa em território português, com enfoque a partir de 1977, data do início da transmissão televisiva de Gabriela, primeira telenovela brasileira divulgada em Portugal.
Mantendo um ponto de vista crítico face à introdução de brasileirismos no português luso, Fernando Venâncio estrutura o seu livro em seis partes. A primeira parte, intitulada «Contactos brasileiros», que poderíamos considerar introdutória, é constituída por nove textos nos quais se faz uma análise, talvez breve, mas não superficial, da situação de exposição de Portugal às características que individualizam a norma brasileira sob um olhar desatento de quem, na opinião do autor, deveria ter uma ação mais interveniente. Essa exposição linguística é desigual quer em quantidade quer em qualidade: regista-se no Brasil um contacto com uma versão formal da língua, sobretudo escrita, usada neste lado do Atlântico; em contrapartida, Portugal está exposto sobretudo a uma dimensão informal e oral da língua tal como é usada no Brasil e que difere da lusa na pronúncia e em aspetos do léxico e da sintaxe, com relevo para a posição dos pronomes pessoais, bem como para a perda de caso em algumas situações. Além da desatenção com que as autoridades tratam as questões da língua, Fernando Venâncio foca ainda a posição dos portugueses face ao problema, realçando os extremos, ou seja, os que são complacentes face à utilização acrítica de brasileirismos e os que são intolerantes.
Depois desta introdução geral, são apresentados seis artigos que foram sendo publicados entre 1984 e 2000, cinco no Jornal de Letras (JL) e um no Expresso. Nos dois primeiros artigos o autor identifica uma acentuada introdução de brasileirismos no português luso, com destaque para os media que lê com regularidade, sem que haja uma valorização adequada dessa situação. No terceiro artigo, intitulado "A língua do Brasil e a atual ficção portuguesa" (JL, 1987) Fernando Venâncio realça a presença de alterações sintáticas no uso dos pronomes e na regência verbal («chamar de…»). Para ilustrar a alteração que relata, o autor aborda a obra Sara, de Olga Gonçalves, publicada em 1986. Sara é uma personagem que surge noutra obra de Olga Gonçalves, Mandei-lhe uma Boca, publicada em 1977. Nesta, Sara, com 17 anos, expressa-se num português isento de brasileirismos, que vão aparecer na sua linguagem na obra de 1986, testemunho atento, na interpretação do autor, das alterações em curso na língua lusa. No artigo publicado em 1991 no JL sob o título "O brasileiro sem mestre", F. Venâncio comenta o Dicionário Contrastivo Luso-Brasileiro de Mauro Villar, que, dividido em duas partes, tem como recetores os falantes brasileiros numa parte e os falantes portugueses na outra, havendo em ambas entradas a merecer um trabalho mais apurado. O artigo que surge em quinto lugar nesta parte foi publicado em 2000, no Expresso, e reconhece que a utilização de brasileirismos regrediu, tendo, entretanto, sido alguns integrados no uso. A introdução de artigos previamente publicados termina com um texto divulgado em 1994 (JL) intitulado "O português dos outros", no qual faz uma análise crítica do opúsculo de David Mourão-Ferreira, Magia, Palavra, Corpo: Perspetivas da Cultura Portuguesa, em que o autor defende uma ativa e multilateral miscigenação do português, que, dessa forma, se enriqueceria ao mesmo tempo que ajudaria a enriquecer o português dos outros países que nesta língua se expressam.
O tema da terceira parte justifica a alteração cronológica dos dois últimos textos, acima. Intitula-se "Redesenhando o português" e é constituída por seis pequenos textos nos quais se analisam diversos aspetos, com uma tónica apontada desde o início: a introdução de brasileirismos em Portugal não é equilibrada com a introdução de lusismos na norma brasileira. O segundo texto (o primeiro constitui uma breve introdução do tema e surge imediatamente a seguir ao título uniformizador) tem como título "Marcas brasileiras" e centra-se em duas obras literárias:
a) Longe de Manaus (2005), de Francisco José Viegas. Nesta obra, alguns dos capítulos (16 dos 76 que a constituem) passam-se no Brasil, e a linguagem das personagens acompanha essa mudança de espaço, sendo rica em brasileirismos;
b) Jóquei (2012), livro de poemas de Matilde Campilho. Os poemas desta autora têm uma linguagem marcadamente brasileira, mesmo que num ou noutro caso haja um registo dificilmente aceite por um brasileiro, segundo Fernando Venâncio.
O terceiro texto "O problema da tradução" salienta a necessidade de oferecer ao leitor um texto que lhe seja aprazível, pelo que uma obra tem sempre traduções distintas para o português do Brasil e para o de Portugal… Tendo por título "A língua pródiga", no texto seguinte Fernando Venâncio reflete sobre a obra The prodigal tongue, (2018) de Lynne Murphy. A autora analisa a inter-relação entre o inglês europeu e o americano com destaque para o autoconceito dos falantes. Contrariamente ao que acontece no português, no inglês verifica-se uma influência mútua entre as duas variantes (europeia e americana). No texto subsequente sob o título "O goleiro e o ouro da Brasil", Fernando Venâncio comenta um artigo de Catarina Silva, publicado no Notícias Magazine de 8/9/2021 e intitulado "O Brasil está a invadir o vocabulário dos mais novos". Nesse artigo aborda-se a abundância da oferta de vídeos infantis presentes no Youtube na versão brasileira com recurso a vocábulos que não fazem parte do léxico luso. Alguns pais entrevistados dão conta de que tiveram necessidade de intervir, explicando aos filhos que aquelas palavras se usam no Brasil, mas não em Portugal.
No último artigo desta parte intitulado "Troia ao barulho", o autor destaca as diferenças entre uma versão luso-juvenil da Ilíada (2014) de Frederico Lourenço e a correspondente no Brasil (2016), com alterações sobretudo na ordem dos pronomes pessoais e nas formas de tratamento.
Na quarta parte, "Algumas curiosidades", Fernando Venâncio apresenta treze textos sobre vocábulos ou expressões curiosas: «Mi àmará ela?» expressão que Camilo Castelo Branco coloca na boca de Eusébio Macário em 1897 e cuja estrutura continua produtiva na Brasil; o autor destaca em "Machucar, enxergar" a preferência do brasileiros por verbos da primeira conjugação (regulares) em detrimento de outros mais complexos (ferir, ver…), encarando, potencialmente, a entrada dos vocábulos lusos como se fossem estrangeirismos… etc.
Num quinto bloco, intitulado "O que eu não posso dizer", Fernando Venâncio explicita a preocupação que perpassa por toda a obra sobre a possibilidade de os portugueses e através deles a norma lusa ser invadida por aspetos da sintaxe brasileira que pouco a pouco vão sendo incorporados de forma sub-reptícia… Dá, ainda, conta de um texto que divulgou no Facebook em 2020, no qual faz um levantamento de erros face ao uso e posição dos pronomes pessoais, considerando que «nisto da colocação dos clíticos, tanto no Brasil como em Portugal, reina uma balbúrdia das antigas» (p. 126). Dando conta de algumas incongruências, o autor salienta que não é possível apontar um caminho, pois se a língua sofre aqui e ali algumas amolgadelas «a maioria dos falantes são, e hão-de ser sempre, uns óptimos bate-chapas» (p. 126).
Finalmente, como epílogo, surge uma sexta e breve parte "E o Futuro?" onde se considera que a diferenciação entre as duas normas, portuguesa e brasileira, continuará o seu percurso, mas onde se diz, também, que esse percurso de distanciação não é imediato e que «Será em língua portuguesa que, por muitas outras décadas, brasileiros e portugueses continuarão a expressar-se» (p. 133).
O Português à Descoberta do Brasileiro oferece ao leitor uma abordagem interessante, rigorosa, mas de fácil leitura, de um tema atual e relevante para o estudo do português.
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