O português histórico - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Início Outros Antologia Artigo
O português histórico

Distingo no português histórico dous períodos principais: o português antigo, que se escreveu até os primeiros anos do século XVI, e o português moderno. A esta segunda fase pertencem já a Crónica de Clarimundo (l520), de João de Barros, as obras de Sã de Miranda, escritas entre 1526 e 1558, as de António Ferreira, a Crónica de Palmeirim de Inglaterra e outros trabalhos literários produzidos por meados do século. Robustecida e enriquecida de expressões novas, a linguagem usada nas crónicas desta época, que relatam os descobrimentos em África e Ásia e os feitos das armas lusitanas no Oriente, culmina o apuro e gosto do português moderno nos Lusíadas (1572). É o século da Renascença literária, e tudo quanto depois se escreve é a continuação da linguagem desse período.
Não ficou, nem podia ficar, estacionário o português moderno; e assim temos de designar pelos qualificativos quinhentista, seiscentista, setecentista a linguagem das respectivas eras. Reservo a denominação de português hodierno para as mudanças características do falar actual, criadas ou fixadas recentemente, ou recebidas do século XIX, ou que por ventura remontam ao século XVII. Limites entre os diversos períodos não podem ser traçados com rigor. Alterações linguísticas não dependem do calendário, nem do ano em que o século acaba ou começa. Além disso, autores há cuja actividade literária se exerce, parte num século, parte no imediato. O que devemos entender por linguagem quinhentista, seiscentista, etc., é a maneira de falar dominante em grande parte da respectiva era, ou nela principalmente. Dizeres peculiares a qualquer das épocas continuam muitas vezes a ser usados por alguns dos escritores do período seguinte.
Ignora-se a data ou momento exacto do aparecimento de qualquer alteração linguística. Neste ponto nunca será a linguagem escrita, dada a sua tendência conservadora, espelho fiel do que se passa na linguagem falada. Surge a inovação, formulada acaso por um ou poucos indivíduos; se tem a dita de agradar, não tarda a generalizar-se o seu uso no falar do povo. A gente culta e de fina casta repele-a a princípio, mas com o tempo sucumbe ao contágio. Imita o vulgo, senão escrevendo com meditação, em todo o caso no trato familiar e falando espontaneamente. Decorrem muitos anos, até que por fim a linguagem literária, não vendo razão para enjeitar o que todo o mundo diz, se decide também a aceitar a mudança. Tal é, a meu ver, a explicação não somente de factos isolados, mas ainda do aparecimento de todo o português moderno.
Não é de crer que poucos anos depois de 1500, quase que bruscamente e sem influxo de idioma estranho, cessassem em Portugal inveterados hábitos de falar e se trocasse o português antigo em português moderno. Nem podemos atribuir a escritores, por muito engenho artístico que tivessem, aptidões e autoridade para reformarem a seu sabor o idioma pátrio e sua gramática. Consistiria a sua obra antes em elevar à categoria de linguagem literária o falar comum, principalmente o das pessoas educadas, tornando-o mais elegante e desterrando locuções que lhe dessem aspecto menos nobre. Este falar comum remontaria aos tempos de Rui de Pina e Zurara, ou se usaria talvez antes. Mas os escritores antigos evitavam afastar-se da prática recebida de seus avós, e, posto que muitas concessões tivessem de fazer ao uso para serem entendidos, todavia propendiam mais a utilizar-se de recursos artificiais, que dessem ao estilo certo ar de gravidade e acima do vulgar.
O século XVI, descerradas as cortinas que encobriam o espectáculo de novos mundos, e dada a facilidade de pôr a leitura das obras literárias ao alcance de todos, graças ao desenvolvimento da imprensa, devia fazer cessar a superstição do passado, mostrar o caminho do futuro e ditar a necessidade de se exprimirem os escritores em linguagem que todos entendessem. Resolveram-se a fazê-lo. Serviram-se da linguagem viva de facto, como o demonstram os diálogos das comédias de então, que reproduzem o falar tradicional da gente do povo. Traziam estes diálogos os característicos gramaticais do português antigo, se fosse este ainda o idioma corrente. Nos séculos que precederam a era quinhentista claro está que a linguagem sofreu também evolução. Entre os antigos autos de partilhas e a crónica de D. João I é palpável a diferença. Seria contudo prematura qualquer subdivisão do português antigo, pois que nos faltam ainda muitos documentos, e de vários códices publicados resta saber a data certa em que foram pela primeira vez escritos.

Fonte

Do Prólogo da Lexicologia do português histórico, S. Paulo, 1921, in "Paladinos da Linguagem"

Sobre o autor

Manuel Said Ali (Petrópolis, 1861 – Rio de Janeiro, 1953), filólogo, linguista e professor brasileiro, foi o primeiro a tratar cientificamente a sínclise pronominal ou mesóclise. Foi no âmbito das suas atividades profissionais como filólogo e linguista que publicou artigos na Revista Brasileira e obras de grande interesse na matéria, nomeadamente Compêndio de geografia elementar e um Vocabulário ortográfico (1905), Meios de expressão e alterações semânticas (1930), Acentuação e versificação latinas (1957).