« (...) É verdade que por séculos Israel não teve um território, pois, após a destruição do templo de Jerusalém e a Diáspora, e até a fundação do moderno Estado de Israel em 1948, o único traço em comum entre os hebreodescendentes foi a religião judaica, o que explica em parte que eles tenham feito do judaísmo a sua pátria. (...)»
A onda migratória que tem invadido a Europa nos últimos anos, formada em dado momento sobretudo por refugiados sírios e africanos, nos faz lembrar que o Brasil sempre foi um país aberto à imigração. De fato, muito do nosso progresso devemos a povos que para cá vieram e com o seu trabalho ajudaram a construir esta nação, dentre os quais se destacam portugueses, espanhóis, italianos, alemães, suíços, poloneses, japoneses, árabes e judeus.
Estes dois últimos povos não constituem propriamente nacionalidades e sim etnias, pois ninguém tem nacionalidade árabe (quem nasce na Arábia Saudita é de nacionalidade saudita e não árabe), mas o que chamamos de árabes eram, na verdade, imigrantes na sua maioria sírios ou libaneses, cuja língua nativa é o árabe. Portanto, árabes são todos os povos cujo idioma pátrio é o árabe. Árabe é, pois, um termo étnico e linguístico.
Bem mais difícil é definir o que seja judeu. Para complicar, muitos usam as palavras judeu, hebreu, israelita e mesmo israelense como sinônimos, o que dá margem a uma grande confusão — e a muitos preconceitos também, diga-se de passagem.
Comecemos então por definir o mais simples: israelense é o termo jurídico que define o cidadão nascido no Estado de Israel ou que possua a cidadania desse Estado, qualquer que seja a sua etnia ou religião. Tanto que há árabes muçulmanos nascidos em Israel e, portanto, detentores da cidadania israelense, o que lhes dá direito a utilizar os serviços públicos daquele Estado. Grande parte do conflito entre judeus e palestinos se dá exatamente por causa da disputa de ambos os povos pelo mesmo território.
Já israelita, hebreu e judeu são nomes que originalmente designavam um povo de língua semítica que habitava a região do Oriente Próximo chamada Judeia. Lá constituíram um reino chamado Israel (não confundir com o atual Estado de Israel), daí serem chamados de israelitas (isto é, filhos de Israel). Mas como os hebreus eram praticantes de uma religião monoteísta por eles mesmos criada e que veio a ser chamada de judaísmo, o termo judeu passou ao mesmo tempo a designar o povo hebreu e sua religião. Enquanto todos os praticantes do judaísmo eram hebreus e todos os hebreus praticavam essa religião (ou seja, as duas comunidades coincidiam totalmente), hebreu, judeu e israelita eram sinônimos perfeitos, tanto para denominar a etnia quanto a religião. (A única diferença, se podemos mencionar alguma, é que hebreu era o habitante de Hebron, judeu o habitante do reino de Judá, e israelita o habitante do reino de Israel. Na prática, todos os três um mesmo povo.)
As coisas começaram a se complicar quando ocorreu a Grande Diáspora judaica, que levou o povo hebreu a se espalhar por vários territórios ao redor do mundo e a assumir várias nacionalidades. Os descendentes dos habitantes da Judeia continuaram a professar o judaísmo e a se sentir pertencentes ao povo de Israel, daí continuarem a se autodenominar judeus. Mas, como uma pessoa pode converter-se ao judaísmo sem ser de etnia hebraica, assim como um descendente de hebreus emigrados pela Diáspora pode ter qualquer nacionalidade, além de poder converter-se a qualquer religião — ou mesmo renunciar a toda fé, como muitos judeus que se declaram ateus —, o termo judeu começa a comportar uma ambiguidade que não permite saber se estamos falando de raça, etnia, nacionalidade ou religião.
Para tornar mais claro o raciocínio, vou adotar termos alternativos para distinguir todos esses conceitos. Em primeiro lugar, convencionemos que o praticante da religião judaica, qualquer que seja sua origem étnica, seja chamado de judaísta. Reservaremos então o termo hebreu para designar os antigos habitantes de Hebron e da Judeia, que por volta do século XIII a.C. criaram o judaísmo e constituíram o reino de Israel.
Por conseguinte, chamaremos de hebreodescendentes aos descendentes dos antigos hebreus, quer tenham nascido em Israel ou em qualquer outro país, quer sejam judaístas ou praticantes de qualquer outra religião (ou de nenhuma). O resultado é que costumamos chamar de judeus tanto aos judaístas quanto aos hebreodescendentes. E é talvez aí que nasce o preconceito que persegue os judeus.
Vou fazer uma analogia para que o leitor entenda melhor. Sou brasileiro, neto de italianos, e venho de uma família católica, embora eu mesmo seja ateu. Os italianos, como se sabe, têm como pátria a Itália e são descendentes, assim como os franceses, espanhóis, portugueses, romenos, etc., dos antigos romanos, povo que viveu na Antiguidade num grande império chamado Roma.
Portanto, sou brasileiro, mas, por ser neto de italianos, tenho direito à cidadania italiana, o que quer dizer que posso morar na Itália e lá usufruir todos os serviços públicos a que os cidadãos italianos têm direito. No entanto, jamais digo que sou italiano, até porque isso seria uma impropriedade (não fui criado na Itália, não sou falante nativo do idioma italiano nem compartilho a maioria das características culturais do povo italiano; além disso, não me naturalizei italiano). Nesse sentido, sou 100% brasileiro e me orgulho disso apesar de todas as mazelas do nosso país. Além disso, poderia dizer de mim mesmo que sou um romanodescendente, já que meus ancestrais há 2 mil anos eram romanos, mas, sinceramente, não vejo muito sentido em proclamar isso. (Os romanodescendentes são o que se costuma chamar simplesmente de latinos, mas tampouco saio por aí dizendo que sou um latino.) Em suma, sou apenas um brasileiro.
No entanto, tenho um amigo que se diz judeu. Assim como eu, ele é nascido e criado no Brasil, portanto sua nacionalidade é oficialmente brasileira, embora ele também goze de cidadania israelense. Seus pais são igualmente brasileiros; seus avós vieram da Alemanha, Polônia e Ucrânia; seus bisavós, da Hungria, Ucrânia e Rússia; e se prosseguirmos nessa viagem ao passado de sua genealogia, encontraremos pessoas do Leste europeu pelo menos nas 20 últimas gerações, de modo que seu mais recente antepassado a viver na Palestina deve tê-lo feito por volta do século X ou XI da era cristã.
Esse meu amigo nasceu numa família em que todos praticam o judaísmo, mas ele, que cedo se interessou pelas ciências naturais, tornou-se cético, agnóstico e enfim ateu. Hoje é professor de física numa importante universidade. Ele não é judaísta nem hebreu (nem poderia, já que os hebreus, segundo a minha nomenclatura, bem entendido, não existem mais), é apenas um hebreodescendente bem distante. Entretanto, ele se diz judeu e assim a ele se referem os outros.
Eu e ele temos situações análogas. Somos ambos nascidos e criados no Brasil, filhos de brasileiros, descendentes de europeus até onde a árvore genealógica de nossas famílias alcança, além de não praticarmos nenhuma religião. No entanto, ele se considera pertencente a um povo que não é o brasileiro, nem o alemão nem o polonês nem o ucraniano: ele é integrante do povo judeu.
O que vocês achariam se eu eventualmente dissesse que faço parte do povo católico? Ou do povo romano? Algumas seitas cristãs até costumam denominar seus fiéis de “povo de Deus”, mas a palavra povo aí não tem qualquer conotação étnica como tem no caso dos judeus; além disso, quem me conhece e sabe do meu anticlericalismo, daria risada do meu suposto catolicismo.
Mais estranho ainda seria se eu reivindicasse para mim a etnia romana, já que sou descendente do “povo de Roma”, que um dia também se dispersou, se miscigenou e virou italiano, francês, português, etc. Como tenho senso de ridículo, digo que sou brasileiro e, se quiserem saber mais, explico que sou neto de italianos. Ponto final.
A questão é que nós, descendentes de italianos, em geral não nos consideramos um povo à parte dentro de outro povo: não somos uma nação dentro do Brasil, como são os povos indígenas. Tampouco os italodescendentes espalhados pelo mundo agem como se fossem uma entidade transnacional, uma nação sem território que está em todos os territórios. (A bem da verdade, uns poucos, bem poucos mesmo, até fazem isso.)
É verdade que por séculos Israel não teve um território, pois, após a destruição do templo de Jerusalém e a Diáspora, e até a fundação do moderno Estado de Israel em 1948, o único traço em comum entre os hebreodescendentes foi a religião judaica, o que explica em parte que eles tenham feito do judaísmo a sua pátria. Mas não nos esqueçamos de que a Itália também só passou a existir como Estado em 1861: antes disso era, no dizer de Metternich, “uma mera expressão geográfica”.
Outro argumento que se pode lançar é que, durante séculos, independentemente de sua origem geográfica, os judeus foram discriminados no Ocidente pela Igreja Católica, o que fez com que todos eles fossem vistos como um único povo e, ao mesmo tempo, um povo distinto dos europeus. Mas é preciso lembrar que, durante a Idade Média, em que essa perseguição foi mais sistemática, não só os judeus eram vistos como uma nação: a própria cristandade constituía uma nação que transcendia territórios e Estados. Portanto, se em tempos medievais havia apenas duas nacionalidades — judeus e cristãos —, hoje as coisas não são mais assim: os cristãos deixaram há muito de ser uma nação transestatal; hoje a nacionalidade política se sobrepõe amplamente à identidade religiosa. O mesmo poderia valer em relação aos judeus.
O fato é que o apego de meu amigo às suas longínquas origens hebreias, a ponto de ele se identificar com uma nação que tecnicamente não existe, é o que atrai para si uma certa suspeita. Como ele mesmo me relatou, já foi algumas vezes vítima de preconceito racial por ser judeu. Mesmo veladamente, alguns colegas deixam transparecer alguma desconfiança, pois o veem como um “agente infiltrado”. Certamente não é o caso do meu amigo, mas muitos judeus tomam atitudes que contribuem para essa imagem de “jogo duplo”: ricos empresários judeus nascidos e criados no Brasil que enviam dinheiro para ajudar Israel na guerra contra os palestinos; judeus nascidos e criados no Brasil que pedem em testamento para ser enterrados em Israel; muitos que se organizam em comunidades e clubes em que a entrada de não judeus é vista com muita estranheza, e assim por diante.
Neste momento em que se afigura uma guerra entre Israel e o Hamas que tende a ser longa e sangrenta, alguns fatos me chamam a atenção. Outro dia, uma “brasileira” (aparentemente carioca, a julgar pelo sotaque) que vive em Israel e tem sobrenome eslavo declarou na televisão que vai alistar-se no exército israelense e combater ao lado do namorado, que é soldado e já está na linha de frente da batalha. Ela tranquiliza sua família, que vive no Brasil, e afirma que é preciso lutar por Israel, segundo ela, o único lugar em que os judeus podem viver. A julgar por sua fala, sua pátria é Israel e não o Brasil, e ela não vê nosso país como um lugar onde judeus possam viver, embora ela própria tenha nascido e por muito tempo vivido no Brasil, e sua família ainda esteja aqui e em segurança.
Outra jovem nascida e criada no Brasil, desta vez com sotaque paulista, no aeroporto já de partida para Israel, declarou à reportagem que está indo lutar na guerra para defender a sua pátria.
De modo geral, a tendência de os judeus se considerarem uma nação à parte dentro de qualquer outra nação que habitem, somada ao fato de não se misturarem com facilidade a outras etnias (casamentos entre judeus e não judeus são pouco frequentes e nem sempre bem vistos), faz com que, apesar de serem vítimas históricas do racismo, sejam muitas vezes injustamente tachados de racistas.
Em resumo, brasileiros filhos de brasileiros, netos de alemães, bisnetos de poloneses e tataranetos de ucranianos são muitas vezes vistos — especialmente pelos menos informados — como se fossem estrangeiros, não importa quão patrioticamente brasileiros eles sejam. Essa ambiguidade no significado da palavra judeu tem, a meu ver, grande peso nessa visão preconceituosa que cerca os judeus.
Enfim, judeus ou israelitas eram em primeiro lugar os hebreus da Antiguidade. Da Idade Média em diante, passaram a ser os judaístas e os hebreodescendentes, sendo que, até certo ponto, todos os judaístas eram hebreodescendentes e vice-versa. Hoje há judaístas que não são hebreodescendentes (como a cantora Aracy de Almeida no fim da vida), há hebreodescendentes que não são judaístas (como Bob Dylan, que se tornou cristão, ou Woody Allen, que é ateu), e nenhum deles é israelense, no sentido de “nascido em Israel”, embora possam usufruir essa cidadania. E, numa grosseira simplificação de linguagem, chamamos a todos eles de judeus.
Enquanto isso, eu, um legítimo romanodescendente, membro da nação cristã (embora ateu), sou apenas um brasileiro. E já acho bastante.
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No quadro comparativo abaixo, procuro fazer uma grosseira analogia entre a comunidade judaica e a latina ou romanodescendente.
Crónica publicada pelo autor no seu blogue Diário de um linguista, em 16 de outubro de 2023.