«(...) Tenho assistido a decisões levianas de tudo lecionar em inglês com o argumento – muito primário, diga-se – de que desse jeito se consegue a internacionalização do estabelecimento.« (...)»
1. O mundo académico da atualidade não pode ignorar a globalização em curso, com tudo quanto isso significa de uso de instrumentos que nos possam fazer vencer em tal feroz competição.
É nesse contexto que se assiste à generalização do inglês como língua franca, agora também no plano do ensino superior, já o sendo noutros “fora”, como o político ou o empresarial.
2. Só que isso está longe de justificar os excessos que têm sido cometidos no ensino do Direito.
Tenho assistido a decisões levianas de tudo lecionar em inglês com o simples argumento – muito primário, diga-se – de que desse jeito se consegue a internacionalização do estabelecimento para efeitos de melhor avaliação.
Ou ver que essa orientação assenta num desejo de natureza "comercial” de atrair estudantes estrangeiros, como se não houvesse estudantes portugueses interessados, colocando-se em causa a razão de ser – sendo instituições públicas – o investimento que é feito pelos contribuintes que querem ver o dinheiro gasto, em primeiro lugar, com os seus concidadãos, alguns excluídos em virtude do numerus clausus.
Quando essa decisão não é mesmo tomada com base em motivos inconfessáveis, ora como manifestação de jactância linguística por quem pretende assim vangloriar-se, ora por haver professores estrangeiros que, contratados por escolas portuguesas, não têm outro remédio senão ensinar inglês, sob pena de ensinarem coisa nenhuma, sendo ilegal que os funcionários públicos não saibam português.
3. Os riscos destas decisões no ensino do Direito são evidentes por não haver um Direito Positivo universal, ou sequer inglês, em cujos países até se vive um sistema oposto à tradição romano-germânica, que é a portuguesa.
O ensino do inglês pode ser viável em disciplinas marginais ou de teoria geral, mas assume-se problemático quando as leis pertinentes ou os elementos doutrinários disponíveis são apenas ou em grande medida na língua de Camões, além de pouco acrescentar porque muitos conteúdos já são versados em línguas estrangeiras, não passando de um saloio deslumbramento de comunicação oral.
E o pior é, em cursos pós-graduados, tornar-se o inglês a língua exclusiva, quando os estudantes que os frequentam estão num mercado de trabalho de Portugal, duvidando-se do que isso adianta.
Que vantagem tem um juiz, procurador, advogado, polícia ou funcionário administrativo frequentar um mestrado em inglês se na sua profissão aplica leis portuguesas, se defronta com julgamentos em português ou se relaciona com colegas lusófonos? Nenhuma.
4. Tais decisões são ainda discutíveis no plano da legalidade aplicável nesse desempenho académico, uma vez que a língua portuguesa é a língua do procedimento administrativo, corolário de aquela ser a língua oficial do Estado (e, portanto, dos entes públicos): as aulas são operações materiais e as avaliações são atos jurídicos inseridos num procedimento administrativo.
Até basta que um estudante exija que o ensino seja em português para deitar por terra tal decisão, o mesmo sucedendo com os docentes, a quem cabe esse direito. Em qualquer destas situações, a adoção da língua portuguesa é uma concretização da liberdade académica, bem como da liberdade de expressão e do direito à cultura portuguesa.
Tudo isto sem esquecer a ausência de qualquer acreditação dos cursos em inglês, não havendo notícia de que as comissões de avaliação façam investigação a respeito das competências linguísticas dos docentes, ou mesmo sobre a coerência dos programas e bibliografias sob a perspetiva de ser aquela a língua utilizada, cujo anúncio nesse momento é omitido.
Este panorama é mais um sinal da pequenez de alguma “elite” jurídica portuguesa: achar que a internacionalização se obtém por um “golpe de mágica linguística”, ou pensar que é falando em inglês que passam a ombrear com as melhores universidades do mundo, sabendo-se que a maioria delas está em paragens não anglófonas, com a óbvia primazia da doutrina germânica.
Cf. School of Law. Nome da Faculdade de Direito da Universidade Nova considerado ilegal + O Triângulo das Bermudas do Ensino Superior + A liberdade de opinião na Universidade + Breve história do Inglês
Artigo do advogado e professor catedrático de Direito Jorge Bacelar Gouveia, transcrito, com a devida vénia, do jornal Público do dia 16 de fevereiro de 2023.