«(...) Os portugueses de hoje não querem, não são, não têm, não fazem. Desejam, constituem, possuem, elaboram. Só se exprimem verbalmente de duas maneiras: ou dizem "Eu não tenho palavras", ou mais valia que as não tivessem, porque arrebitam a linguagem até ao ridículo. A utilização saloia do inglês também é típica destes tempos: por que é que escrevemos on-line quando não dava trabalho nenhum escrever "em linha"? (...) Ele é o retail park, o express shopping, as férias low cost (esta é particularmente significativa: nenhum português faz férias de "baixo custo" ou "baratas"; mesmo que as passem na Cova do Vapor, passam-nas em inglês). (...)»
[Crónica sobre o "policiês", os anglicismos a eito e o falar rebuscado em geral no espaço público português. Publicada pelo autor, ainda em vida, primeiro, no jornal Público de 24 de julho de 2010 e, depois, integrada no livro Ouro e Cinza (Tinta da China Edições, 2014). E recordada, em sua memória, na rubrica da Antena 1 A Contar, de David Ferreira, no dia 3 de maio de 2016, que aqui se deixa também disponível.]
Ora leiam, se fazem favor, a seguinte declaração de um militar da GNR a um dos telejornais de segunda-feira 19 de Julho último [2010] a propósito de uma acção na qual participara: «Detivemos alguns indivíduos que se dedicam ao furto de estabelecimentos de venda de veículos velocípedes simples.» É uma pérola do português contemporâneo. Quer dizer que prenderam um grupo que assaltava lojas de bicicletas. Mas, é claro, da boca de um polícia nunca podem sair vulgaridades como «assaltar» ou «bicicleta». Eles falam policiês, um dos dialectos portugueses mais rebuscados que conheço. É até por isso que polícias e jornalistas dizem «a autoridade tomou conta da ocorrência», em vez de utilizarem uma expressão mais simples como, por exemplo, «chegaram os chuis».
Mas não são só os polícias. Vejam os estudantes do ensino superior. Também falam rebuscado. Nenhum utiliza o verbo ter. Nenhum escreve uma frase como «a igreja tem uma abóbada de pedra», para citar um exemplo da minha área. Escrevem: «A igreja possui uma abóbada de pedra.» Nem o verbo fazer: dizem «a Igreja de S. Vicente de Fora foi elaborada por Baltazar Álvares». Menos ainda o verbo ser: escrevem «constitui um projecto». E nem pensar no verbo pôr: dizem «coloca-se o caixilho».
Reparem também no modo como se eliminou pouco a pouco do português o verbo querer. Os empregados perguntam-nos nos restaurantes: «E café, vai desejar?» Querer é aparentemente um acto demasiado assertivo para os portugueses, talvez até mal-educado, tem-se um certo receio de querer ou de perguntar se alguém quer.
Os portugueses de hoje não querem, não são, não têm, não fazem. Desejam, constituem, possuem, elaboram. Só se exprimem verbalmente de duas maneiras: ou dizem «Eu não tenho palavras», ou mais valia que as não tivessem, porque arrebitam a linguagem até ao ridículo.
A utilização saloia do inglês também é típica destes tempos: porque é que escrevemos on-line quando não dava trabalho nenhum escrever «em linha»? Olhem em volta para os anúncios: ele é o retail park, o express shopping, as férias low cost (esta é particularmente significativa: nenhum português faz férias de «baixo custo» ou «baratas»; mesmo que as passem na Cova do Vapor, passam-nas em inglês).
A melhor explicação para esta substituição do português pelo imbecilês é o novo-riquismo. Durante décadas (séculos), a maioria dos portugueses não tinha qualquer hipótese de se exprimir em público, com excepção do círculo familiar. Agora que essa hipótese existe, constroem a linguagem como um parolo constrói a sua nova casa... E fazem idêntica figura de parvo.
Mas haja esperança: é bom sinal, por exemplo, que já estejam a desaparecer as bandas e cantores que cantavam em inglês. Nunca percebi se era o sonho de gravar o tal disco em Londres que lhes proporcionasse a fama mundial, se, como é mais provável, a incapacidade de escrever em português duas linhas que fizessem sentido.
Crónica publicada pelo autor, ainda em vida, primeiro, no jornal Público de 24 de julho de 2010 e, depois, integrada no livro Ouro e Cinza (Tinta da China Edições, 2014). Respeitou-se a norma ortográfica de 1945, conforme o original.