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Reduzir limite de velocidade e deixar de chamar acidentes
Reduzir limite de velocidade e deixar de chamar acidentes
Zero mortes na estrada em Lisboa “não é uma utopia”

Lisboa ainda não aprovou o Plano de Segurança Rodoviária - deve ser apresentado em breve. Apesar de parecer impossível, acabar com as mortes e atropelamentos na cidade “é algo que se consegue”. É preciso coragem política. Pontevedra alcançou a proeza. Oslo e Helsínquia também.

 

Ao longo do século XX, a responsabilidade da segurança nas ruas da cidade foi sendo passada da política para a individual – e há uma certa culpabilização de quem utiliza as vias e acaba interveniente direto em acidentes rodoviários. Ou devemos chamar-lhes sinistros?

É esta a ideia de Mário Alves, engenheiro civil e especialista em transportes e mobilidade, que aconselha o abandono do termo acidente do léxico jornalístico, em situações de reporte de colisões rodoviárias. “Deve usar-se sinistro, talvez seja a palavra adequada”, diz. “Não é por acaso” que é a palavra utilizada pelas seguradoras, “porque é neutra em termos de tribunal. Se for um acidente, já não é neutra”.

Acidente é uma palavra com “uma conotação de azar, de um ato de Deus, que não pode ser evitada”, quando, na realidade, “só uma pequeníssima percentagem são acidentes”. A grande maioria “são situações que podem prever-se e evitar-se”. É isso que se quer que aconteça.

88 mortos em Lisboa – 38 peões

Em 2018, a sinistralidade rodoviária fez 88 mortos no distrito de Lisboa, 30 dentro dos limites da cidade. Nesse ano, morreram 19 peões na cidade de Paris e 57 em Londres. A partir dos dados para o distrito de Lisboa, divulgados pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), entre as vítimas mortais, 38 eram peões e três eram pessoas que circulavam de bicicleta.

À luz do Código da Estrada, as pessoas que se deslocam a pé e de bicicleta são utilizadores vulneráveis. Devem ser especialmente protegidos pelos demais utilizadores das estradas, mas ainda representam grande parte das vítimas.

Quando se reduz velocidades, baixa exponencialmente a exposição ao risco. Nas cidades, o elo mais fraco são os utilizadores vulneráveis. Ao contrário de quem circula no interior de um automóvel, peões e utilizadores de bicicleta “não têm um exoesqueleto, não têm uma carapaça metálica à sua volta, não têm airbags”.

Na segurança rodoviária, “a vacina é a redução das velocidades”. Em Londres, um estudo conduzido pelo British Medical Journal, revelou uma redução de 32% no número de mortos e feridos entre peões nas zonas em que o limite máximo de velocidade desceu para os 32 quilómetros por hora. Nas crianças até cinco anos de idade, a redução chegou aos 47%. Entre os seis e os 11 anos, o número de vítimas diminuiu 51%. Por cá, a norma ainda são os 50 quilómetros por hora, as coisas tardam em mudar.

Há uma ligação direta entre a probabilidade de um atropelamento revelar-se fatal e a velocidade do automóvel envolvido. É a própria Comissão Europeia a dizê-lo. Os atropelamentos de peões por veículos que circulam a uma velocidade inferior a 32 quilómetros por hora revelam-se fatais em apenas 5% dos sinistros, mas quando a velocidade aumenta, a mortalidade cresce exponencialmente. 

A 48 quilómetros por hora, perto do limite de velocidade dentro das localidades, os atropelamentos são fatais em 45% dos sinistros.

Quando a velocidade atinge os 64 quilómetros por hora, ocorrência comum nas avenidas mais largas da cidade, o atropelamento tem como resultado a morte do peão em 85% das ocorrências.

O utilizador vulnerável “é extremamente frágil aos impactos com chapa ou com o chão”, mas persiste “alguma dificuldade” em compreender o crescimento exponencial do risco associado à velocidade.

“A distância de travagem e a velocidade cinética diminuem com o quadrado da velocidade”, explica Mário Alves. Os condutores “acabam por ser vítimas do sistema”, da própria infraestrutura rodoviária das cidades “que convida à velocidade” e que impede o fácil reconhecimento de que “é preciso a distância de seis ou sete carros para travar e para evitar o sinistro”.

Uma questão de fiscalização?

Se a redução das velocidades é central à redução das vítimas da sinistralidade rodoviária, a realidade é que estas não descem apenas por decreto. Aqui, a fiscalização e o comportamento dos condutores desempenham um papel crucial.

No relatório de 2019 Reducing Speeding in Europe do Conselho Europeu de Segurança nos Transportes (ETSC), a análise comparativa do número de multas de velocidade em 2017 colocava Portugal como um dos países com pior desempenho, com 43 multas por excesso de velocidade, por mil habitantes.

Com 457 multas por excesso de velocidade por mil habitantes, os Países Baixos lideravam. Na tabela comparativa também se destacavam a Bélgica, com 299, e a França (que, em 2016 – último ano para o qual são apresentados valores – registava 253).

Mário Alves afirma que “temos um problema” enquanto não vierem ordens “de cima” para que as autoridades com competência fiscalizem o cumprimento do Código da Estrada, “nomeadamente as velocidades urbanas”.

Para o especialista, a fiscalização integra um “sistema de cumplicidades, em que há outro tipo de prioridades”, apontando como exemplo a “mais frequente” fiscalização dos condutores em autoestradas, relativamente à “mais importante” fiscalização em meio urbano.

O ponto negro das grandes avenidas

O especialista acredita que as autoridades “não têm, das cúpulas e da ANSR [Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária], ordens para aumentar a fiscalização”. E não tem dúvidas: “Se começarmos a fiscalizar o estacionamento ilegal, o metro e meio ou a não ocupação da via adjacente [na ultrapassagem], as velocidades baixarão, o número de mortes baixará”.

Persistem “problemas culturais graves, de mentalidade. Mais depressa a ANSR publica um manual para ensinar os peões e ciclistas a ter cuidado do que dá ordens à polícia para fiscalizar os motoristas que são, de facto, a fonte do perigo”, diz. 

Para além da fiscalização, pode ser o próprio comportamento de uma maioria cumpridora de condutores a ter um “efeito simpatético de contaminação”. Se a maioria “começar a cumprir os 30 quilómetros por hora, têm um impacto profundo em todos os outros, que vão atrás”.

Em janeiro de 2018, em entrevista à Antena 1, o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, considerava “absolutamente inaceitável” o elevado número de atropelamentos e vítimas. Como solução, declarava a intenção de “generalizar em zonas urbanas o limite de 30 à hora”.

Três anos e meio depois, foi Espanha a fazê-lo. Em maio deste ano, foi decretada a velocidade máxima de 30 quilómetros por hora em todas as faixas de circulação rodoviária dos centros urbanos que disponham apenas de uma via para cada sentido. A medida deverá afetar 70% das vias do país.

Portugal, apesar da intenção declarada pelo alto responsável político, não seguiu, ainda, o mesmo rumo.

Em Lisboa, as zonas 30, em que a velocidade máxima permitida é de 30 quilómetros por hora, têm vindo a multiplicar-se, sobretudo em bairros e ruas residenciais da cidade, como são os casos do Bairro do Arco do Cego, arruamentos de Alvalade ou alguns quarteirões das Avenidas Novas.

São, contudo, ainda muitas as zonas da cidade em que o limite de velocidade não desceu e em que o perfil das vias potencia a prática de velocidades excessivas em contexto urbano e incompatíveis com a segurança rodoviária.

Um relatório, publicado em 2018 pela associação Prevenção Rodoviária Portuguesa (PRP), dá conta do cenário registado na cidade de Lisboa em matéria de atropelamentos, entre 2010 e 2016.

Neste período, os atropelamentos constituíram 27,1% do total de sinistros rodoviários registados no município, mas representaram 53,6% do total de vítimas mortais. No decorrer destes sete anos, morreram 75 pessoas, vítimas de atropelamento na cidade de Lisboa.

A artéria da cidade com o saldo mais negativo neste período foi a Avenida 24 de Julho, com sete mortos e 12 feridos graves. Embora neste eixo a velocidade máxima não tenha sido reduzida, a avenida foi, desde então, alvo de obras de requalificação.

A Avenida das Forças Armadas registou, neste período, quatro mortos e nove feridos graves, sem que isso tenha motivado alterações recentes ao perfil da faixa de rodagem ou a adoção de medidas de acalmia de tráfego.

A Avenida Almirante Reis registou três vítimas mortais e 18 feridos graves, vítimas de atropelamento.

“Nem mais uma vítima”

A 10 de julho do ano passado, uma jovem foi mortalmente atropelada no Campo Grande, enquanto atravessava a estrada numa passagem de peões. O condutor terá ignorado um sinal vermelho. A tragédia motivou a reunião de centenas de pessoas, numa vigília pelo fim dos atropelamentos na cidade. No local, nada mudou. 

A morte no Campo Grande é um exemplo da mudança de atitude em relação à responsabilidade: achou-se que era um problema de polícia, porque o condutor não parou no sinal vermelho. Na altura, diz Mário Alves, passou-se de “uma responsabilidade política para uma responsabilidade individual”. Desde então, o perfil daquela faixa de rodagem não sofreu quaisquer alterações com o intuito de promover a circulação a velocidades mais reduzidas.

“Se calhar”, sugere, “devia ter havido acalmia de tráfego na aproximação às passadeiras”. “Se não somos capazes de proteger os mais vulneráveis – as crianças, os ciclistas, os peões – temos um enorme falhanço da democracia e como sociedade”.

No passado sábado, a sinistralidade rodoviária fez outra vítima, mais chocante: uma mulher que se deslocava de bicicleta na Avenida da Índia foi mortalmente abalroada por um condutor de um automóvel. “O idoso encandeou-se. Há sempre uma desculpa que politicamente permite sair fora do quadro”, diz.

Perante estes dados, Mário Alves defende que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) devia “assumir imediatamente a responsabilidade política do problema”, anunciando “as medidas que vão ser tomadas nas próximas semanas, nos próximos meses e nos próximos anos para evitar que aconteça mais uma situação daquelas”.

Recorde-se que para aquela avenida estava prevista a implementação de uma ciclovia pop-up, no âmbito do plano de expansão da rede ciclável apresentado em 2020, em resposta à emergência pandémica. O projeto chegou a ser publicado no site da CML. A empreitada acabou, no entanto, por ser cancelada.

Porque, como explica à Mensagem, Miguel Gaspar, vereador com a pasta da mobilidade, se “começaram a levantar questões” relacionadas precisamente com a segurança: a avenida “tem um perfil muito largo”, explica, “e os carros podem atingir velocidades excessivas, acima dos 50 quilómetros por hora”.

É assim que justifica a decisão de alterar o projeto, de modo a “aumentar o grau de segregação” da futura ciclovia, através da colocação de floreiras.

Em declarações prestadas antes, Miguel Gaspar dizia que, ao contrário do inicialmente previsto, a ciclovia da Avenida da Índia, que assegurará a ligação entre Algés e o Cais do Sodré, “não ia ser feita já”.

A empreitada está a ser preparada pelo município e poderá vir a ser adjudicada nos próximos quatro meses. “É possível que [a obra] comece ainda este ano”.

Em comunicado lançado ontem, a MUBi – Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta e a Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados (ACA-M) – associações que Mário Alves integra – bem como outros grupos ligados à promoção da mobilidade em bicicleta, apelam ao fim da “negligência política” em matéria de atropelamentos. Exigem do Governo e das autarquias “medidas urgentes”, entre as quais o “reforço das ações de educação e sensibilização para a cidadania rodoviária”, a “intensificação da fiscalização rodoviária” e um pedido à Câmara Municipal de Lisboa, visando a imposição do limite de velocidade de 30 quilómetros por hora “na maior parte” das ruas da cidade.

Às 11 horas de sábado, no local do sinistro, realiza-se uma vigília “pelo fim dos atropelamentos”, sob o mote “Podia ser eu, podias ser tu. Nem mais 1 vítima”.

Culpabilizar a vítima?

O peão que atravessa a passadeira sem olhar. O ciclista que circula sem capacete, sem seguro, sem matrícula. Nas redes sociais, assiste-se ao disseminar de um discurso de ódio e que propaga a ideia da culpabilização da vítima. É facilmente identificado nas caixas de comentários de links que noticiam tragédias humanas nas estradas e ruas da cidade. Com a mais recente tragédia, na Avenida da Índia, a história repetiu-se.

Uma política de redução de riscos não pode incidir sobre os mais vulneráveis: será importante, por exemplo, os ciclistas “aconselharem-se uns aos outros sobre qual a melhor maneira de se comportarem”, mas Mário Alves considera que é “pouco ético” que o estado promova “uma adaptação ao risco” por parte de utilizadores vulneráveis, como são as crianças ou os utilizadores de bicicleta.

O foco deve ser orientado para “a fonte de risco” – o automóvel. “É uma tonelada a velocidades excessivas”, sublinha. 

Até porque toda a situação proporciona uma “falta de empatia” dos condutores de automóveis para com os utilizadores vulneráveis, “gerada pelo facto de estares dentro de uma caixa insonorizada a ouvir rádio e totalmente fora do teu mundo. Não se sente sequer a velocidade a que se vai”, diz o especialista. “A responsabilidade política está lá e por isso é que nós os elegemos – para verem para além deste caldo cultural, para pensarem mais do que a pessoa na rua. E tem de haver campanhas fortes para normalizar e humanizar os peões e ciclistas. Podem ser os nossos irmãos, os nossos filhos, as nossas mulheres, pessoas muito próximas”.

 

Zero mortes na estrada até 2030 em Lisboa

A responsabilidade sobre este assunto tem de ser assumida por todos e muito, também, pelos responsáveis políticos, utilizadores e engenheiros. O princípio deve ser o de que nenhuma morte é admissível. E cabe, também, ao ambiente construído prever e evitar a falha humana. É neste princípio de partilha de responsabilidades que se baseia a Visão Zero.

A ideia de que o problema não é apenas dos condutores, mas também no desenho das vias. Na largura da estrada, no seu perfil, nas medidas de acalmia de tráfego adotadas.

A ACA-M tem vindo a sublinhar a importância do conceito, que surgiu na Suécia há 20 anos. “Tornou-se num slogan muito usado em cidades europeias e americanas, mas sem grande sucesso”, diz Mário Alves.

Há, porém, exceções. A cidade espanhola de Pontevedra, com mais de 80 mil habitantes, com o centro encerrado à circulação automóvel, decretou, em 2011, 30 quilómetros por hora em toda a cidade. Desde então, não há mortes em resultado de sinistros rodoviários. Em 2020, o edil, Miguel Anxo Llores esteve num debate na Brasileira do Chiado, e referiu a responsabilidade política: “O espaço público é um direito. Um espaço público dinâmico e que não te mate. Os políticos têm responsabilidade porque podem decidir quem circula no espaço público.”

Mas o sucesso não se limita, apenas, a cidades de pequena ou média dimensão. Seguiram-se Oslo e Helsínquia. As cidades capital da Noruega e Finlândia, respetivamente, adotaram como princípio para a estratégia de segurança rodoviária a Visão Zero. Em 2019, alcançaram o principal objetivo: zero mortes entre peões e utilizadores de bicicleta.

Em 2017, o valor cobrado a cada automóvel que entrava em Oslo subiu 70% e os preços do estacionamento aumentaram em 50%. A velocidade máxima passou para 30 quilómetros por hora e o trânsito foi cortado à volta das escolas. No total, foram retirados mais de mil lugares de estacionamento e foi promovida a expansão da rede de ciclovias. Também em Helsínquia o feito surge depois da redução da velocidade máxima no centro da cidade para 30 quilómetros por hora e da intensificação da adoção de medidas de acalmia de tráfego.

Ou seja, é preciso “a vontade de assumir e comunicar as responsabilidades que se têm e que todos temos em mudar politicamente a cidade”. É uma questão de “coragem política”, diz Mário Alves.

Lisboa, contudo, já assumiu a ambição. A 6 de março de 2019, a CML anunciou o início da construção do seu Plano Municipal de Segurança Rodoviária. Sob o mote Missão Zero, foi declarado o objetivo de alcançar as zero mortes na estrada em 2030.

Desde então, poucas novidades sobre o plano vieram a público. À Mensagem, fonte da vereação da mobilidade confirmou que o documento se encontra ainda em desenvolvimento e apontou os meses de agosto ou setembro como prováveis para a sua submissão ao conselho consultivo, que deve dar o seu contributo para a versão final da estratégia municipal.

Fonte

Artigo de Frederico Raposo, publicado no jornal em linha Mensagem de Lisboa, em 2 de julho de 2021

Sobre o autor

Nasceu em Lisboa, há 28 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta – , o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.