Se quer obter de facto alguma presença no Brasil, Portugal tem hoje de actuar em termos muito intensos de indústria cultural e de ocupação mediática. A não ser que queira recorrer a umas festas com comida e ranchos que dançam músicas minhotas com trajos alentejanos.
1. No diário de viagem de Jorge Sampaio, era possível ler-se no dia 23 de Abril: "Não devemos esquecer o que representa o facto de este grande país que é o Brasil, com toda a sua complexidade social e política, ter feito questão de nos ter a seu lado nestas comemorações. Todos sabiam o debate político que elas provocariam e a oportunidade que elas ofereciam para expressão de problemas do tempo presente." A oportunidade aí está, trata-se de a não perdermos.
O grande mérito destas confusas e atribuladas comemorações consiste sobretudo na oportunidade que nos proporciona para desfazermos alguns equívocos e prepararmos um terreno limpo para novas iniciativas. Neste plano, gostaria de partir de uma observação interessante, em depoimento ao PÚBLICO, de António Gomes da Costa, a quem a presença de Portugal no Brasil tanto deve. Depois de assinalar que nestes últimos tempos estamos a viver um momento especial de relacionamento, sobretudo no plano económico, Gomes da Costa observa que só espera que "o novo tipo de relacionamento luso-brasileiro não sacrifique a amizade histórica que nos une. Porque, apesar dos ganhos, ainda é melhor ser irmão do que parceiro".
Será? Esta é a questão. Durante anos e anos batemos nesta tecla da fraternidade algo assimétrica, porque do lado português era colorida de sentido paternal e do lado brasileiro implicava um sentido filial (que não excluía um secreto desejo de parricídio).
Ora a retórica desenvolvida com base nesta ideia de relações familiares teve dois defeitos: por um lado, enredou-se numa teia de complexos envenenados que regularmente explodiram em sintomas bastante gritantes (a ideia de que os portugueses foram maus colonizadores e que teria sido preferível ter tido bons colonizadores reaparece com impressionante frequência, e os tempos pós-coloniais e multiculturais criaram as condições teóricas para que certas coisas pudessem ser ditas com mais facilidade); por outro lado, repousou-se muito na família, cujos laços poderiam garantir uma dependência eterna, e com isso descurou-se a construção de nós concretos de relacionamento. Foi quando a linguagem fria dos números se impôs que se conseguiu avançar de facto no conhecimento recíproco (que é aquele que necessariamente deriva da presença de empresas portuguesas investindo no Brasil, sobretudo se estas, seguindo o exemplo brasileiro, souberem complementar a sua acção com iniciativas eficazes de mecenato cultural).
Donde, haverá talvez vantagem em avançarmos para o estatuto de parceiros que ainda por cima têm a vantagem de uma língua em comum (o que, no plano cultural, tanto une como separa). Porque aqui não temos o meio caminho andado de uma fraternidade ambígua, e somos assim obrigados a fazer o caminho todo.
Por outro lado, vale a pena reflectirmos numa advertência de um texto de opinião de Miguel Vale de Almeida. Ele observa que temos assistido - e nesse plano a política cultural externa portuguesa é um tecido de equívocos - "a uma reconfiguração pós-colonial da identidade" que "tem sido lenta e ambígua porque a política comemorativa tem cerceado o seu papel crítico". E continua: "em vez de abraçarmos um hibridismo e multiculturalismo propositivos, refugiámo-nos na reciclagem de velhas ideias e confortamo-nos com o mito de que criámos no passado esse mesmo hibridismo e multiculturalismo".
Estas comemorações tiveram uma dose suficiente de desastre e desaire (apesar, repita-se, do esforço imenso que foi colocado em diversas instâncias pelo lado português, em particular pela Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses) para permitirem uma revisão radical de uma política cultural portuguesa que retomou a ideia de lusofonia como se ela fosse a versão democrática da mentalidade colonial.
Neste plano nenhuma obra mais actual do que o conjunto de ensaios intitulado "Imagem e miragem da lusofonia", que Eduardo Lourenço acrescentou ao volume a que deu o belo título de "A nau de Ícaro".
2. A ideia inicial é que uma língua não tem "sujeito", porque ela mesma é o "sujeito" que fala através daqueles que a falam: "Ninguém é seu 'proprietário', pois ela não é objecto, mas cada falante é seu guardião, podia dizer-se a sua vestal, tão frágil coisa é, na perspectiva do tempo, a misteriosa chama de uma língua."
Ora os portugueses tendem a considerar-se "donos da língua" e garantes da sua versão "correcta": orgulhando-se dos cento e muitos milhões de falantes do português (número que é em si mesmo uma projecção feita de muito boa vontade), acham que devemos defender a língua dos "brasileirismos" que a abastardam. Por outras palavras, acham que os 10 milhões de portugueses estão no centro da dinâmica da língua portuguesa, e não os mais de 100 milhões brasileiros.
O contentamento que regularmente retiramos dos números que atribuímos à terra encantada da lusofonia é, como sublinha Eduardo Lourenço, um contentamento sem substância: "Se contentamento é permitido, só pode ser o que resulta do imaginar que esse amplo manto de uma língua comum, referente de culturas afins ou diversas, é, apesar ou por causa da sua variedade, aquele espaço ideal onde se comunicam e se reconhecem na sua particularidade partilhada todos quantos os acasos da história aproximou".
A segunda questão essencial é o duplo mal-entendido dos discursos culturais recíprocos. Por um lado, muitas vezes o Brasil reincide na sua tentativa para rasurar "a raiz lusitana donde procede". E por outro lado "o discurso português sobre o Brasil é (...) pura alucinação nossa , que o Brasil - pelo menos desde há um século - nem ouve, nem entende. Já é tempo de sabermos ao mesmo tempo das excelentes razões que os brasileiros têm para não ouvir, nem entender, tal discurso e das ilusões patéticas, mas exteriores, que cultivamos para não abdicar desse diálogo de surdos institucional que é, na sua essência e na sua realidade, o pseudodiscurso, supostamente privilegiado, que estruturava essa invenção mítica de outrora chamada 'comunidade luso-brasileira".
O terceiro ponto é que, se o verdadeiro colonizado da colonização brasileira é o negro e o índio (e vimos agora que ele foi a verdadeira vítima dessa escandalosa cena das comemorações em Porto Seguro), a classe dirigente do novo Brasil não vai fazer "o processo da sua própria dominação". E por isso "a sua estratégia - consciente e inconsciente ao mesmo tempo - foi a de se ir esquecendo do seu natural passado" e "de deslocar a sua atenção cultural para novas fontes de cultura (França. Inglaterra, mais tarde os Estados Unidos)".
Se juntarmos a isto a extrema juventude da sociedade brasileira e o modo como ela é influenciada pela crescente americanização dos modelos culturais no mundo, percebemos que Portugal que, durante longos anos jogou nas boas vontades recíprocas e no empenhamento de alguns notáveis professores no plano universitário, tem hoje, se quer obter de facto alguma presença, no Brasil, de actuar em termos muito intensos de indústria cultural e de ocupação mediática. Doutro modo, estaremos condenados àquelas descrições desalentadas de uma comunidade portuguesa profundamente envelhecida e conservadora em total ruptura com os valores culturais dos filhos, e que tem como único recurso para adiar a anunciada catástrofe umas festas com comida e ranchos que dançam músicas minhotas com trajos alentejanos.
* Crónica publicada no suplemento Leituras do diário português "Público" em 6 de Maio de 2000.