« (...) Alguns episódios, recentes e coincidentes no tempo, devem alertar para a necessidade de discutir a literatura portuguesa pós-colonial e a inevitável abertura à reinterpretação do cânone. Por muito que custe. (...) »
A ausência de discussão explícita e consistente sobre o Portugal pós-colonial tem expressão no plano nacional de leitura, nos curricula do ensino básico e secundário e no modo como a literatura portuguesa é tratada pelas instituições. A visibilidade pública da literatura portuguesa não-branca pós-colonial, sobre como estes autores olham o seu Portugal, é quase inexistente. Apesar das exceções honrosas. Em contrapartida, o modo como a língua portuguesa é ensinada, dentro ou fora do cânone, tornou-se acessível pela afixação de conteúdos em acesso aberto na rede.
Literatura Portuguesa Pós-Colonial e Linguagem
Alguns episódios, recentes e coincidentes no tempo, devem alertar para a necessidade de discutir a literatura portuguesa pós-colonial e a inevitável abertura à reinterpretação do cânone. Por muito que custe.
A querela nos Países Baixos, acerca da tradução do poema de Amanda Gorman para neerlandês, por uma tradutora branca e não ativista, espantou a Europa e Portugal. O mote estava lançado. Isabel Lucas trouxe o debate em março para Portugal, alargado ao envio de uma petição à Disney, reclamando nova dobragem portuguesa de Soul. Neste filme de animação sobre o jazz e a comunidade afro-americana nos Estados Unidos, não existiu uma única voz negra na dobragem em português.
Depois, soube-se da aula de Os Maias por Vanusa Vera-Cruz Lima, luso-cabo-verdiana, leitora de português nos Estados-Unidos, centrada na linguagem supostamente racista de Eça de Queirós. Foi questionada a legitimidade de uma interpretação de Eça de Queirós desviante do cânone.
A questão da linguagem alegadamente racista na literatura faz parte de um movimento intelectual norte-americano mais amplo. A hipersensibilidade que muitos académicos nos Estados Unidos têm à linguagem surpreende a Europa bem-pensante, mas o discurso está a chegar. Gostemos ou não, vem com a globalização e a força da América, e vai provavelmente mudar o uso da linguagem metafórica que assimilámos sem refletir sobre conotações.
Negro, listas negras, quebrar correntes, as crises de melancolia negra de Pedro da Maia ou os olhos de Maria Monforte que parecem negros de cólera. O “negro” associado a sentimentos ou qualidades negativos, “correntes” à escravatura.
Há poucos dias, o seminário Descolonizar o cânone literário deu-nos a ouvir, sobre estes temas, autoras e artistas negras e mestiças do campo da literatura e das artes: portuguesas ou de língua portuguesa.
A discussão em Portugal sobre se a literatura e a tradução têm raça, cor e género, sobre o cânone pós-colonial e a representação dos vários segmentos da população portuguesa nas letras, é ainda elementare e surge atrasada em relação a outros países europeus. Talvez em razão da descolonização mais tardia e da presença dominante de autores africanos como Mia Couto, Pepetela e Agualusa.
Tal debate entrou agora e tem de ser feito quanto antes, para evitar sufocos e ruturas na sociedade e na língua portuguesa.
Literatura Pós-Colonial no Reino Unido e em França
A literatura pós-colonial assumiu perspetivas e ritmos diferentes no Reino Unido e em França. O reconhecimento da literatura em língua inglesa, desde V.S. Naipaul, Salman Rushdie, Arundhati Roy, Afua Hirsch, Chimanda Ngozi Adichi, Monica Ali, Hanif Kureishi, Bernardine Evaristo, entre muitos outros, revela, desde há tempo, o ímpeto das diferentes visões na relação entre língua, povos e culturas.
Em França, o debate surgiu mais tarde, com a globalização dos anos noventa e um crescente desconforto. Culminou com a publicação do Manifesto para uma literatura-mundo, em 2007, pedindo uma mudança radical do estatuto da literatura então designada por outra França, o seu reconhecimento em posição central, o fim das categorias e do conceito de francofonia.
O diálogo entre o franco-argelino Kamel Daoud e Albert Camus é um exemplo recente, a questão do lugar da literatura negra é outro exemplo. A América ajudou a eliminar categorias e a dar hipervisibilidade a alguns escritores, transformados em escritores-espetáculo. É o caso do franco-congolês Alain Mabanckou, reconhecido nos Estados Unidos, onde é professor de literatura francesa na UCLA desde 2002. Em França vence o prémio Renaudot em 2006, e assume a cátedra Criação artística no Colège D’Europe em 2015 e 2016. Mabanckou representa as dificuldades sentidas pelo olhar diferente, testemunha como a literatura pós-colonial não significa vitimização ou rancor pela violência colonial, aspira antes ao reconhecimento de dentro, não quer ser lido como a literatura dos outros.
Discutir em Portugal a Alteridade, Inquietude e Transformação
Em Portugal, recentemente, Djaimila Pereira de Almeida e Joaquim Arena foram premiados, aplaudidos pela crítica e citados em estudos sobre o cânone pós-colonial como exemplos de um novo mirar. Djaimila escrevendo sobre assimilação e no seu diálogo com Garrett, Arena perturbando o leitor com o olhar sobre o distinto cavaleiro negro trajando o hábito da Ordem de Santiago no centro do Chafariz d’ el Rei, pintura do século XVI.
A atitude perante a literatura pós-colonial, no Reino Unido e em França, mostra a diferença entre alteridade, fusão, mudança e reconhecimento do outro. A discussão gerada pela tradução do poema de Amanda Gorman e dobragem das vozes negras de Soul bem como a interpretação estática de cânones da literatura portuguesa revelam tendências identitárias. Se exacerbadas, colocarão em perigo o encontro de perspetivas diversas, a alteridade e a mudança na interpretação do mundo.
Em todos estes campos, a discussão sobre a literatura portuguesa pós-colonial deve cultivar a arte de reconhecer o outro, abrir-se à diferença, à inquietude, às transformações, evitar tendências identitárias de indivíduos e grupos em identidades únicas, homogéneas e fechadas.
Também sabemos que o ciclo é vicioso: se as instituições não integram a variedade de ângulos da literatura pós-colonial, não aparecerão novos autores, os melhores autores. E, no ensino, não preparamos os mais jovens para o Portugal contemporâneo.