«Em qualquer cultura, a língua foi-se desenvolvendo à medida que foram surgindo realidades novas que precisavam de ser nomeadas. A perceção delas precedeu o nome que receberam.»
Tem raízes germânicas a tendência de se ver na língua um carácter e até mesmo uma espécie de espírito. Wilhelm d'Humboldt [1767-1835] e Herder [1744-1803], precursores, aliás, de muita etnolinguística contemporânea, lançaram-lhe as bases. Na Alemanha do século XIX falava-se da língua como se de um ser vivo, com alma, se tratasse. Ela captava o espírito (Geist) de um povo, mas tinha como que vida própria. No início do século XX, foi nos Estados Unidos da América que Edward Sapir [1884-1939], e depois o seu discípulo Benjamin L. Whorf [1897-1941], deram finalmente corpo à hoje chamada «hipótese de Sapir-Whorf», que gozou durante muitos anos de enorme popularidade entre antropólogos e linguistas. Segundo ela, cada língua teria imbuída em si uma visão do mundo intraduzível para qualquer outra. Aliás, essa hipótese reaparece hoje de alguma forma num outro discurso, onde de certo modo entram, habitualmente mal encaixados, Wittgenstein [1889-1951], Willard Quine [1908-2000], Donald Davidson [1917-2003] e Jacques Derrida [1930-2004], para mencionar apenas os luminares. A inclusão desses nomes, tanto quanto me parece, é mais da responsabilidade de comentadores e seguidores do que dos próprios, pelo menos nos casos de Wittgenstein, Quine e Davidson. E refiro-me expressamente à conceção da lingua como condicionante de um pensamento, de uma visão do mundo, o que é algo diferente do facto de qualquer lingua estar estruturada em parâmetros que tornam difícil a transição dela para outras – a tradução –, particularmente em áreas abstratas, sobretudo as mais afastadas do domínio empírico e do mensurável. Ninguém objetará, por exemplo, contra a afirmação de que na poesia e no humor há nuances nas linguas, que as tornam verdadeiramente intraduzíveis, pelo menos em instâncias ou casos determinados.
Este, porém, não pretende ser um ensaio propriamente filosófico. Cingir-me-ei a aspetos práticos que possam traduzir-se em argumentos a contrapor o entusiasmo com a língua tão frequentemente alardeado na nossa comunicação social e no discurso político.
Benjamin L. Whorf tem passagens que refletem posições díspares sobre a sua conceção da relação língua-pensamento, o que nos permite construir dois Whorfs – o duro e o moderado. Segundo o primeiro, as línguas constituem a base sobre a qual assenta a visão do mundo de uma cultura sendo por ela e nela que a vivemos e pensamos. Cada língua determinaria assim uma particular visão do Universo. Segundo a proposta moderada, seria maior o espaço de liberdade e menor o condicionamento ou a sujeição do falante à estrutura da língua. Diríamos que a língua condiciona, afeta, molda de algum modo a sua mundividência. Digamos que se trata de urna formulação com bem maiores probabilidades de verificação empírica.
Não vale a pena prosseguirmos nesta direção. Bastará mencionarmos algumas facetas popularuchas de tais conceções: os alemães são duros e belicosos porque dura e áspera é a sua língua. Os ingleses são empíricos porque a sua língua detesta palavras abstratas. Os italianos cantam a falar porque a sua língua é cheia de vogais. Recordo mesmo ter lido uma proposta de explicação da força popular do maoismo pelo facto de a língua chinesa ser ideográfica.
Nós tivemos em Portugal os frutos dessa conceção anímica da língua. Teixeira de Pascoaes [1877-1952] deu o lamiré e António Quadros [1923-1993], em vários livros, mas sobretudo n'O Espírito da Cultura Portuguesa, glosa abundantemente o tema da intraduzibilidade de alguns vocábulos como derivada do carácter único de certas experiências linguísticas. Saudade era, e é ainda para muitos, o grande exemplo. Quadros elaborou urna lista que chegava a incluir palavras perfeitamente traduzíveis em outras linguas, mas que em português tinham, segundo ele, uma ressonância, uma vivência, uma vida, muito especial e única mesmo. Mar era uma delas. Outras eram viagem, demanda, nau, Oriente, amor, império.
Não é invulgar depararmos com afirmações do teor desta de Sousa Dias:
Impensável um Heidegger nas línguas japonesas [...]; um Hegel em chinês [...]. Difícil um empirismo na Alemanha, porque a língua alemã tem a memória da Raiz, a nostalgia do Grund. Difícil, ao invés, uma metafísica inglesa; o inglês é uma língua que procede por relações, conexões laterais, pura superfície imanente, agramatical, sem interior, sem espessura. O inglês, língua a bem dizer empirista, como o alemão, língua constitutivamente metafísica.
M.S. Lourenço [1936-2009], por exemplo, reuniu num belo livro um ensaio em que tentara explicar a ausência do sentido de ironia na cultura portuguesa nos seguintes termos:
Para nos orientarmos na procura desta doutrina, temos que nos deixar guiar pelo princípio seguinte: tudo aquilo que não pode ser claramente expresso também não pode ser claramente experienciado. Só depois de eu estar de posse de um vocabulário mínimo acerca de uma certa área da minha experiência, me é então possível vivê-la clara e refletidamente. Nestas circunstâncias é-se imediatamente levado a concluir que o homem português não pode ter uma vivência clara e refletida dos seus estados de consciência, em virtude de não existir na sua língua um vocabulário suficientemente desenvolvido para a exprimir!
Estamos em presença de mais uma versão da hipótese de Sapir-Whorf, agora afirmada e argumentada num contexto da cultura portuguesa. A evidência parece conduzir-nos à visão oposta: em qualquer cultura, a língua foi-se desenvolvendo à medida que foram surgindo realidades novas que precisavam de ser nomeadas. A perceção delas precedeu o nome que receberam. Isso torna-se bem mais evidente quando se trata de realidades empíricas. A descoberta ou criação de um novo objeto acarreta a necessidade de se nomeá-lo. Toda a história da ciência e tecnologia é um exemplo óbvio desse processo. Mas não é apenas aí que assim acontece. Quer dizer, pois, que parece estarmos em presença do fenómeno inverso ao proposto por M.S. Lourenço: a realidade, ou melhor, a consciência dela, precede o nome. Mesmo no caso do mito, o conceito precede o nome que se lhe dá.
Eduardo Lourenço [1923-2020], num texto sobre a língua, tem uma passagem que parece vinculá-lo às conceções de Herder, Sapir e Whorf:
Não pode dizer-se de língua alguma que ela é uma invenção do povo que a fala. O contrário seria mais exato. É ela que o inventa. A língua portuguesa é menos a língua que os Portugueses falam do que a voz que fala os Portugueses.
Mais adiante, diz ainda:
Quiseram também as circunstâncias – na sua origem pouco recomendáveis – que a nossa língua europeia, e em contacto com a africana escrava, se adoçasse, mais do que já é na sua versão caseira, para se tomar esse ritmo aberto e sensual, indolente, do português do Brasil ou o tom nostálgico de Cabo Verde.
A linguagem frequentemente metafórica de Eduardo Lourenço não nos permite só por uma passagem como estas colocá-la definitivamente ao lado da hipótese sapiriana, pois o ensaísta possui bastantes textos que, justapostos a este, o moderam suficientemente.
Não foi só em Portugal que a hipótese de Sapir-Whorf circulou com foros de tese. Os regimes totalitários atribuem às palavras essa capacidade de serem responsáveis pelo pensamento. George Orwell [1903-1950], no seu 1984, demonstrou à saciedade o ridículo de tais pretensões. A queda do Muro de Berlim fez o mesmo, de outra maneira. O politicamente correto é não só a outra face da mesma moeda, mas acaba por ser simultaneamente o seu contrário. Por um lado, a lingua determina a visão do mundo, havendo que abolir todos os termos racistas, machistas e quejandos. Limpar a língua significaria limpar a realidade, corrigir os males da língua implicaria corrigi-los na realidade.
Lembro a história daquele pobre na América que se lamuriava: «Já me chamaram poor, needy, lower class, underprivileged, e agora chamam-me economically challenged, mas continuo sempre sem dinheiro nenhum!» Ou ainda aquela outra, do rei que decidiu exterminar o racismo nos seus domínios mandando pintar toda a gente de azul. Então surgiram nos autocarros tabuletas com a norma: «Azul-claro à frente, azul-escuro atrás.» O que me traz à memória o comentário de Francisco Carmo, um excelente professor da minha adolescência, quando Marcello Caetano [1906-1980] quis dar ares de renovação ao País mudando o nome da União Nacional para Ação Nacional Popular, e o nome da policia politica, a negra PIDE, para DGS (Direção-Geral de Segurança): «As coisas mudam de nome, mas o nome não muda as coisas.»
Por outro lado, o politicamente correto assenta no princípio de que a lingua é um reflexo da nossa visão do mundo (neste particular aspeto em oposição à hipótese de Sapir-Whorf), sendo o repositório codificado de todos os preconceitos da Humanidade ao longo da sua História.
Em tempos demonstrei como por aí se chega a delírios. Luce Irigaray [1930-...], a conhecida filósofa francesa, por exemplo, defendeu que um trabalho paciente de análise do género das palavras revelava o sub-reptício viés cultural inscrito na linguagem, mais exatamente a visão que a sociedade tem dos sexos. Segundo Irigaray, [na língua francesa] os objetos masculinos teriam mais valor, e os femininos mais utilidade. O computador (l'ordinateur) é masculino, enquanto a máquina de escrever (la machine à écrire) é feminina. Prevalece sempre o masculino: o avião (l'avion) é superior a la voiture [o automóvel]; o le Boeing é maior do que la Caravelle. E assim por diante.
Demonstrei noutro lugar a implausibilidade desta tese. Na verdade, até existir o Boeing não era a Caravelle o avião maior? Antes de l'ordinateur, o que era importante não era la machine à écrire, como la voiture antes de l'avion? E a montanha não é, tanto em francês como em português, maior do que o monte, que é masculino e bem mais pequeno?"
Steven Pinker [1954-...], no seu The Language Instinct, serve-se dos mais recentes avanços linguísticos para destruir com argumentos rápidos e potentes esse demónio tentador de atribuir demasiado poder à lingua. Mas não era preciso o seu aval para, à vista desarmada, nos apercebermos de que a lingua é um pouco de muitas coisas: repositório das experiências culturais de um povo e reflexo das mundividências diversas (faço questão de o acentuar, porque nenhuma cultura é homogénea) de um povo. Além disso, de algum modo ela aprisiona os seus falantes em universos particulares, carregados de semânticas específicas partilhadas apenas por determinadas comunidades. As linguas são tão maleáveis ou fraternas quanto o forem os seus falantes; científicas ou filosóficas, quão científicos ou filosóficos forem os seus utentes. Os filósofos gregos e os alemães é que desenvolveram a faceta filosófica do grego e do alemão, como os romanos fizeram para o direito, os franceses para a culinária, os americanos para a informática, e assim por diante. A língua acompanhou e foi surgindo, foi sendo criada e moldada no processo.
A língua portuguesa não é mais ou menos fraterna do que as demais, nem mais ou menos dominadora ou dialogante que as suas congéneres (Alfredo Margarido [1928-2010] cita o gramático João Ribeiro [1860-1934] para quem o português não seria «uma língua de diálogo, mas de dominação e de ordens»). Ela foi perra e atada no tempo do fascismo, e era a mesma descendente de Camões e de Eça. Hoje está solta (para alguns, demasiado solta), porque hoje estamos à solta ou, pelo menos, mais descontraídos e mais em contacto com o resto do mundo. Quem negará todavia que, após o 25 de Abril, a língua portuguesa se libertou, porque os portugueses se libertaram de amarras diversas? Basta compará-la com a que se escrevia nos jornais e se falava na rádio e televisão dos remotos tempos do PREC.
Foi isso que Mia Couto [1955-...] captou maravilhosamente ao parafrasear Bernardo Soares: «A minha pátria é a minha língua portuguesa.» No caso dele, é o português de Moçambique. Noutros, será o do Brasil, de Cabo Verde, ou dos Açores. Uma língua plural como os seus falantes, que tanto podem ser conservadores, como comunistas, ou liberais. Que foram monárquicos e inquisidores, comerciantes e missionários, e descobridores e traficantes de escravos, colonialistas e aventureiros. A lingua deles foi registando tudo isso e daí que hoje procuremos limpá-la, arejá-la, modernizá-la. Mas isso só acontece, porque estamos a tentar fazer o mesmo à própria cultura que ela expressa e que nós vivemos.
Excerto do capítulo "Reflexões sobre a língua – o que ela não é nem pode ser", do livro A Obsessão da Portugalidade (Lisboa, Quetzal, 2017, pp. 98-104), de Onésimo Teotónio Almeida