«(...) Quem abdica de dizer o seu pensamento está a abdicar do entendimento do mundo, da liberdade e da cidadania. (...)»
Com a polarização política que se vive atualmente, vai parecendo cada vez mais arriscado expressar pensamentos, sobretudo quando estes divergem dos do mainstream, o que é frequentemente o meu caso. Nada mais lesivo, porém, para a saúde de cada um e a da sociedade.
Falar é uma das atividades humanas mais complexas e a linguagem, que se traduz nos milhares de línguas existentes, é a característica que nos distingue das demais espécies. Falar não é só produzir sons mais ou menos articulados: muitos animais emitem sons articulados e isso não significa que falem. Falar implica necessariamente veicular conhecimento, através de um contínuo de sons articulados; falar é dar forma linguística aos pensamentos. Não é só por termos um aparelho fonador sofisticado que conseguimos falar. Falamos porque temos um cérebro mais desenvolvido do que o de outras espécies, que permite à espécie humana pensar.
Pensar é, diz-nos a Infopédia, «fazer uso da razão para depreender, julgar ou compreender; encadear ideias de forma lógica; raciocinar». Apesar de, segundo a definição anterior, o pensamento pressupor consciência, a verdade é que ele nem sempre é consciente. Muitos dos nossos pensamentos são processos intuitivos resultantes de evolução, que nos permitem tomar decisões como trincar uma maçã que cheira bem ou abrigarmo-nos porque começou a chover. Não é este, porém, o tipo de pensamento que nos distingue dos restantes animais, que, também eles, o desenvolveram para garantir a sobrevivência. O que nos distingue como seres humanos é o pensamento consciente, i.e., aquele que o dicionário citado definiu.
O pensamento consciente expressa-se em imagens, pensamento visual, ou em palavras, pensamento verbal. Pensamos em imagens, e.g., quando relembramos um momento em que fomos felizes através de uma imagem concreta, um instantâneo que o representa como uma fotografia. Os pensamentos em palavras, ou pensamentos verbais, são aqueles que somos capazes de dizer, expressar usando a nossa língua, no monólogo interior ou na comunicação com os outros. Para dizer um pensamento precisamos de ter/tomar consciência dele e de o veicular através de uma sequência de palavras com uma estrutura interna (a frase), que veicula um significado resultante das palavras e da estrutura (a semântica) e cumpre uma determinada função (pragmática), transformando-se em enunciado, que, por si só ou com outros enunciados, pode constituir um discurso e ser entendido pelo enunciador e pelos seus interlocutores, se os houver.
Para dizer um pensamento precisamos de o entender, porque o próprio ato de lhe atribuir uma forma linguística nos obriga a elaborá-lo, delimitá-lo, defini-lo. A relação entre dizer e entender não se faz, porém, só num sentido, do pensamento à palavra, mas tem efeito retroativo: um pensamento dito pode ser recriado, i.e., ao atribuirmos forma à substância, tornamo-la objeto passível de ser reelaborado, redefinido. Verbalizar o pensamento é essencial para melhor o compreender. Daí o sucesso dos confessionários e dos consultórios de psicoterapia e psicanálise.
Se a fala, que é instantânea e efémera, resulta de uma atividade tão complexa, já a escrita, que é elaborada, perene e pode ser fruída interminavelmente, constitui o apogeu da expressão do pensamento consciente. Por isso a escrita constitui uma das maiores invenções da Humanidade e o princípio mesmo da História.
Quem abdica de dizer o seu pensamento está a abdicar do entendimento do mundo, da liberdade e da cidadania.
Artigo da linguista e professora universitária Margarita Correia, publicado no Diário de Notícias de 1 de agosto de 2022.