«(...) [A] relação entre escrita e fonética tem uma longa história. (...)»
Há pouco mais de um mês, a minha crónica «Ora vamos lá fingir que está tudo bem com a fonética…» provocou vivos comentários, que podemos sintetizar nestas reacções extremadas: «Esta crónica é um absurdo. A fonética não se guia pela ortografia»; ou: «Absurdo é achar que a fonética não se guia nada pela escrita.» O recente livro de Manuel Monteiro, aqui referido na passada semana, já esclarece, e bem, dando-nos vários exemplos (ver págs. 205-206) de como um grande número de palavras alteradas pelo Acordo Ortográfico de 1990 tem ganhado leituras absurdas nos meios de comunicação sonoros, em particular na televisão (exemplo: no dia 8 de Junho, num noticiário da SIC, ouvimos “projêto” em lugar de “projecto” com e aberto).
Mas a relação entre escrita e fonética tem uma longa história, e é bom lembrar alguns pontos. Sendo a fonética «o conjunto dos sons e das articulações próprias de uma língua» (como diz o Grande Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado (1981), essas articulações e sons são tão diversos que o Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (2001) incluiu em «todas as entradas lexicais» a sua «transcrição fonética segundo a norma culta, aproximada, de Lisboa e centro do país». É, aliás o único a fazê-lo, e numa opção bastante discutível – que o Acordo de 1990 copiou de forma ainda mais abstrusa nesta bizarríssima formulação (Ponto 1.º, alínea c, da Base IV): «Conservam-se ou eliminam-se facultativamente, quando se proferem numa pronúncia culta, quer geral, quer restritamente, ou então quando oscilam entre a prolação e o emudecimento.»
A «norma culta» passou, assim, a «pronúncia culta» (como se as demais pronúncias no território nacional, e são tantas, fossem todas incultas), num texto que, pela sua ambiguidade, abre portas a toda a espécie de malabarismos pseudo-ortográficos. Para quem acha que «a fonética não se guia nada pela escrita», nada melhor do que ler esta passagem da Nota Explicativa do Acordo (AO90): «Pode dizer-se ainda que, no que respeita às alterações de conteúdo, de entre os princípios em que assenta a ortografia portuguesa se privilegiou o critério fonético (ou da pronúncia) com um certo detrimento para o critério etimológico.» Ora com «um certo» pendor para confundir mais do que clarificar, ei-lo que acena com o «critério fonético»!
E é aqui que entra o tambor. Um dos grandes discos dos anos 1980 intitula-se «O Ó, Que Som Tem»? (1983). Rui Júnior, criador e mentor de tal projecto (mais tarde criaria os Tocá Rufar), baseou-se numa lengalenga vinda das brincadeiras do pai, quando era pequeno. «Um miúdo voltava-se para outro e perguntava: "O ó, que som tem?" O outro respondia: "Ora de ó, ora de u."» Ora esta metamorfose sonora (neste caso do o, que tanto pode soar ó, ô ou u) é regida na escrita portuguesa por sinais diacríticos, da acentuação às consoantes ditas “mudas”.
E esses sinais têm vindo a diminuir com o tempo e as sucessivas reformas, deixando cada vez mais à memória e ao contexto (nos casos em que este existe) as variações da prosódia. Na reforma de 1911, por exemplo, ainda havia acordo (ó) e acôrdo, seca (é) e sêca, troco (ó) e trôco, erro (é) e êrro, corte (ó) e côrte, reforço (ó) e refôrço, sobre (ó) e sôbre, etc. Em 1945, esta acentuação foi anulada, na Base XXII do AO45: «Conquanto se distingam na pronúncia, não se distinguem na escrita.» Sem acentos, passaram a homógrafas, embora num processo ocorrido quase sempre entre substantivos (ô, ê) e formas verbais (ó, é).
Já o AO90, com a abolição de consoantes ditas “mudas”, passou a fazer depender da memorização o som de substantivos de estrutura idêntica, como espeto (ê) e aspeto (è), arrivistas (â) ativistas (à), nação (â) e fação (à), colete (ê) e coleta (è), senhor (e mudo) e setor (è), relação (â) e redação (à), temor (e mudo) vetor (è), etc. E fez o mesmo entre adjectivos, como forreta (ê) e correta (è), carreto (ê) e correto (è), imperativo (â) e interativo (à). Mesmo assim, ficou longe da proposta de Acordo de 1986, que abolia o acento em centenas de palavras, tornando homógrafas, por exemplo, hábito e habito, doméstico e domestico, récita e recita, víveres e viveres, trânsito e transito, fábrica e fabrica, e muitos etc.
Teria sido lindo. Mas ainda que tal delírio tenha sido rejeitado, o que acabou por fazer o AO90, seu sucessor, vem na senda da redução progressiva de sinais diacríticos, dificultando a clareza da prosódia em milhares de palavras. É como se, aos poucos, fôssemos (escrever “fossemos” aqui não ia bem, pois não?) retirando sinais de trânsito de ruas e estradas, deixando à memória de peões e condutores as regras de circulação. Felizmente para todos, não são os acordistas convictos que gerem a segurança viária. Mas onde se metem, é certo e sabido: há desastre.
Artigo da autoria do jornalista português Nuno Pacheco, transcrito, com a devida vénia, do jornal Público de 25 de julho de 2024. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.