A lei «que precisa “vigir”», a luz que pode ou não “deslumbrar” ao fundo do túnel, «reações feéricas» assinalada na agitação de rua que percorre o Brasil, a chuva “intermitente” por causa da falta dela em dias de canícula. E, ainda o “mandado” presidencial de Dilma Roussef. Palavras enganosas de quem, falando na TV e na rádio, evitá-las ia facilmente, se... o dicionário fosse mesmo de consulta obrigatória. Se...
[artigo do autor na sua coluna semanal no jornal brasileiro “Folha de S. Paulo”, que aqui se transcreve com a devida vénia.]
A barbárie brasileira não tem fim. Nos momentos mais agudos, sempre há quem proponha mudanças na lei com o fim de erradicar isto e aquilo, punir este ou aquele etc. É o que se vive agora, depois da tragédia que levou de nós o cinegrafista da TV Bandeirantes Santiago Ilídio Andrade. O Brasil vive de improvisos, como se o país não fosse, por si só, um caótico improviso.
Num desses discursos de ocasião, uma autoridade de um dos estados da federação disse que «essa lei precisa vigir o mais rápido possível». Em seguida, alguém perguntou a essa autoridade se era possível «deslumbrar uma luz no fim do túnel«.
Ai, ai, ai... Alguns jornalistas e (pior, muito pior) muita gente do direito, da justiça, etc. trocam "viger" pela inexistente forma "vigir". Uma lei não deve "vigir"; deve "viger", que é sinônimo de «vigorar», «ter vigência», «estar em vigor». Não custa lembrar que, se o infinitivo é "viger", o gerúndio é "vigendo" («Essa lei ainda não está vigendo»).
"Deslumbrar" não é sinônimo de «vislumbrar», que, ao que parece, era o verbo que o entrevistador pretendia usar («É possível vislumbrar uma luz no fim do túnel?»). "Vislumbrar" significa «enxergar parcial, indistinta ou fracamente» ("Houaiss"); “deslumbrar" significa «ofuscar», «causar ofuscamento», «fascinar», «causar encantamento», etc.: «Visitou o Canadá e ficou deslumbrada com tudo o que viu por lá».
Na TV, nas conversas sobre as manifestações, a violência etc., volta e meia se ouve alguém falar em «reações feéricas», «comportamento feérico», etc. Parece que querem dizer «reações ferozes», «comportamento feroz». O adjetivo "feérico" não tem nada que ver com a selvageria ou com o mundo das feras. De origem francesa ("féerique"), a palavra "feérico" se refere ao mundo das fadas ("fée" é «fada» em francês). Como se vê, "feérico" significa «mágico», «pertencente ao mundo da fantasia», «fantástico», «fascinante». Quem nos dera fosse realmente «feérico» (e não feroz) o comportamento da parcela selvagem dos manifestantes (e também o da parcela selvagem dos policiais)!
Recentemente, um radialista de uma das nossas mais importantes emissoras falava do calor, da (falta de) chuva, etc. Lá pelas tantas, disse que uma chuvinha fraca e rápida como a que caíra na tarde daquele dia não bastava. «Precisamos de uma chuva intermitente», disse ele. Salvo engano, o radialista queria dizer «chuva ininterrupta», ou seja, constante, sem interrupção, contínua. É claro que ninguém quer um temporal que dure 400 horas, mas uma chuva intermitente, isto é, uma chuva que não é contínua, que não é constante, que vai e vem, não parece ser a solução para o que se vive hoje em boa parte do país.
Outra dupla perigosa é formada por "mandado" e "mandato". O mandato (e não o "mandado") da presidente Dilma Roussef, o dos atuais governadores e o dos deputados federais terminam em 31 de dezembro deste ano.
O fato é que estamos todos sujeitos a cochilos desse tipo, mas, quando eles ocorrem, o resultado quase sempre é desastroso. A solução? Precaver-se, é claro, o que significa, por exemplo, recorrer a um dicionário, quando a dúvida se manifesta. O problema é que boa parte das pessoas que tropeçam nessas palavras traiçoeiras sempre as usou com plena convicção de acerto. Aí, parece não haver nada a fazer. É isso.