Sobre o Acordo Ortográfico (AO), em vigor em Portugal desde maio de 2015, o presidente da República (PR), Marcelo Rebelo de Sousa, admitiu numa breve declaração «repensar essa matéria», se Angola e Moçambique não ratificarem definitivamente o tratado. Os especialistas defensores do AO criticam «ideia delirante» do PR, porque o que está em causa é já uma «questão multilateral». Texto transcrito do Jornal de Notícias de 5 de maio de 2016.
[Ver também: Acordo Ortográfico sob polémica presidencial]
Bastou uma breve declaração do presidente da República (PR) para colocar em polvorosa os defensores do Acordo Ortográfico (AO), em vigor em Portugal desde maio de 2015. Ao admitir «repensar essa matéria», se Angola e Moçambique não ratificarem definitivamente o tratado, Marcelo Rebelo de Sousa pode até ter querido contribuir para estabelecer os tão desejados consensos. Esqueceu-se é de que, em matéria linguística, o que separa "acordistas" de "desacordistas" é muito mais vasto do que aquilo que os une.
As reações não se fizeram esperar. Contactados pelo JN, especialistas na matéria não poupam nos adjetivos quando instados a comentar a atitude do chefe de Estado. O reputado professor e linguista Malaca Casteleiro admite mesmo ter ficado «surpreendido» com a intervenção de Marcelo, até porque «não faz sentido reabrir a questão, sobretudo da forma extemporânea como o fez». Para o "pai" do AO, como é designado com frequência, os dois únicos países da CPLP que não ratificaram o tratado deverão fazê-lo em breve: Moçambique aguarda apenas o "sim" do parlamento local, depois da "luz verde" governamental, enquanto Angola pretende ver satisfeitas algumas exigências relacionadas com o idioma bantu.
Malaca Casteleiro não exclui sequer uma hipotética revisão do AO, defendida por parte dos opositores, mas para tal é preciso que o acordo seja ratificado por todos os países da CPLP. «Foi preciso quase um século de discussão para chegarmos a este acordo. Mesmo os que criticam os seus moldes nunca me propuseram um melhor. Foi o possível», diz.
Ainda mais incisivo nas críticas é José Mário Costa, responsável editorial do popular site Ciberdúvidas, para quem Marcelo cometeu uma «gafe diplomática»: «Só por manifesta má informação, provavelmente por deficiente aconselhamento nesta área tão fraturante no meio intelectual português, se pode interpretar uma iniciativa destas, e logo em Moçambique, num campo que não é da sua competência institucional», critica.
«Intervenção inoportuna» é como a professora universitária e investigadora Margarita Correia classifica as dúvidas expressas pelo PR, que considera, aliás, inexatas no que à posição de Moçambique concerne. A prova disso, assegura, é que a atual diretora do Instituto Internacional da Língua Portuguesa é uma moçambicana, Marisa Mendonça. Mas o maior foco das críticas à intervenção presidencial prende-se mesmo com a crença de que será possível a um país, isoladamente, colocar em causa todo o processo. Além de ser «uma ideia delirante que ignora todo o investimento feito ao longo dos anos», Margarita Correia acredita que o AO «é já uma questão multilateral», que extravasa por isso as competências de um chefe de Estado.
A «péssima imagem» que uma eventual reabertura do processo causaria ao Estado português nem seria o pior, assegura a docente, convicta de que no ensino se instalaria a desordem generalizada. «Cinco anos depois da implementação nas escolas, não faz sentido. A aprendizagem das crianças foi pacífica», defende.
Texto transcrito do Jornal de Notícias de 5 de maio de 2016.