Um balanço sobre o estado da questão da aplicação do Acordo Ortográfico em Portugal, a cargo da jornalista Alexandra Prado Coelho, no Público de 30 de Dezembro de 2009, que aqui se transcreve com a devida vénia. Ver ainda os textos complementares deste trabalho: Motivação no Brasil: imprensa já aplica desde Janeiro de 2008+ Bastidores de acordos de 1911 e 1945: uma história com 20 anos... ou com um século
O Acordo Ortográfico começa a ser aplicado em Portugal em 2010, mas o coro de críticas não pára. A introdução está a gerar muitas dúvidas e o próprio acordo é, dizem os críticos, ambíguo. São precisas regras claras antes de o começar a usar, caso contrário o risco de confusão é grande.
Os críticos defendem que ainda se vai a tempo de travar a aplicação do Acordo Ortográfico e os defensores respondem que ele já está em vigor. A nova ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, parece partilhar as convicções do antecessor, José António Pinto Ribeiro, e diz que quanto mais depressa o aplicarmos, melhor será para afirmar a língua portuguesa no mundo. A ministra da Educação, Isabel Alçada, pede tempo para a introdução das novas regras nas escolas. Em que ficamos?
«O processo ainda pode ser parado», diz o escritor Vasco Graça Moura, um dos mais activos críticos. «Não pode avançar sem haver ratificação por todos os países. Se o objectivo é a unidade da grafia, basta que um não avance para que não faça sentido.» Tal como o Governo recuou no caso da localização do novo aeroporto, também deve recuar no Acordo Ortográfico, defende. «Quem não está a aceitar isto são umas baratas tontas na CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa] que têm que arranjar um pretexto para terem alguma actividade.»
«Não há nenhuma possibilidade de recuo, o acordo está em vigor», contrapõe José Mário Costa, fundador e coordenador do site Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Favorável ao acordo (uma posição pessoal), justifica: «O português arrisca-se a ter não duas ortografias oficiais, mas oito e isso não pode acontecer numa língua que pretenda ser universal.»
O linguista António Emiliano, outro crítico, considera que a decisão do Ministério da Educação de não avançar com o acordo já em 2010 é «do mais elementar bom senso». «Desafio qualquer pessoa a aplicar o Acordo Ortográfico. As ambiguidades são tão grandes, que há casos em que não sabemos o que fazer.» Neste momento «ninguém sabe aplicar o acordo».
Malaca Casteleiro, também linguista e um dos responsáveis pela elaboração do acordo, lamenta a forma «desorganizada» como se está a avançar para a aplicação (depois de o Ministério da Cultura ter dito que começaria a ser aplicado em Janeiro de 2010, a ministra esclareceu que seria apenas a agência Lusa a fazê-lo), e reconhece que, como em tudo, «há sempre coisas que podem ser melhoradas». Mas «fazer uma revisão agora seria muito complicado» num acordo que envolve oito países e que «foi aprovado há quase 20 anos».
Um dos pontos mais polémicos é o das consoantes mudas (acção/ação, óptimo/ótimo, baptismo/batismo, tecto/teto) que Portugal vai abandonar, aproximando-se da forma usada no Brasil. Graça Moura e Emiliano argumentam que as consoantes mudas cumprem a função de abrir a vogal que as precede e que a sua perda altera a pronúncia. «Não se pode correr o risco de começar a pronunciar com vogais fechadas palavras como espectáculo/espetáculo ou excepção/exceção. No Brasil isso não é um problema porque eles abrem as vogais, mas nós fechamo-las», diz Graça Moura.
Malaca Casteleiro discorda totalmente. «A oralidade precede a escrita. A palavra tem uma imagem acústica e uma imagem gráfica. É a gráfica que alteramos. A acústica mantém-se igual. E há palavras em que a consoante muda não abre a vogal: é o caso de "actual".» Além disso, a questão da perda (em Portugal) das consoantes mudas era fundamental para se chegar a acordo com o Brasil. «Se não o fizéssemos, como é que íamos unificar a ortografia? Exigíamos aos brasileiros que reintroduzissem as consoantes mudas?»
Para Emiliano o problema está precisamente na suposta necessidade de um acordo. «O português europeu [a norma seguida também nos PALOP] e o do Brasil estão em processo tão acelerado de divergência que é um disparate achar que um acordo vai resolver algum problema.» Este tem sido um dos principais argumentos dos opositores: a unificação da ortografia não vai ultrapassar o facto de o português de Portugal e o do Brasil serem já muito diferentes.
Para o linguista, porém, o mais grave, sobretudo para o ensino, é o facto de «o acordo falar repetidamente de facultatividade». Um exemplo: «Posso passar a escrever o meu nome como António ou Antônio, as duas formas passam a ser oficiais. Posso até escrever António numa linha e Antônio na seguinte e ninguém pode dizer que está errado.»
Três Vocabulários
É por causa de o acordo deixar várias opções em aberto que todos – críticos e defensores – consideram indispensável uma ferramenta prevista no acordo e que o Brasil já tem: um Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), uma autoridade máxima que, em caso de dúvidas, seja a referência oficial da língua.
Em Portugal há o risco de confusão, dado que tudo indica que possa haver três VOLP. Um já está editado, pela Porto Editora, e foi coordenado por Malaca Casteleiro. Outro está em preparação pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), será gratuito (foi apoiado pelo Fundo da Língua Portuguesa) e deverá estar disponível on-line no Portal da Língua Portuguesa a partir de 4 de Janeiro (150 mil palavras para já, enquanto um dicionário de nomes próprios, outro de gentílicos e topónimos e um conversor, e mais 50 mil palavras serão acrescentadas até Março). E um terceiro está a ser elaborado pela Academia das Ciências.
Margarita Correia é a responsável, no ILTEC, pelo projecto a que foi dado o nome de Vocabulário Ortográfico do Português. Faz parte do grupo restrito de pessoas que até agora pensaram na aplicação prática do Acordo Ortográfico. Como o fizeram? Em primeiro lugar definindo uma série de critérios que serão também tornados públicos.
«O acordo remete muitas vezes para uma tradição, mas em lugar nenhum define qual é essa tradição. Por isso optámos por regularizar bastante a ortografia». Em muitos casos isto significou tirar os hífens (de «cor-de-rosa», por exemplo, que o acordo admitia com hífens referindo a «tradição», ao mesmo tempo que deixava sem hífen «cor de vinho»). Quando a referência é a pronúncia optou-se por seguir a da região de Lisboa.
«O texto legal [do acordo] é aberto, mas é ambíguo e tem até contradições internas. Mas ninguém o vai ler quando tiver uma dúvida. O que se espera é que haja especialistas que façam a interpretação através do Vocabulário», diz Margarita Correia.
A grande dúvida, segundo José Mário Costa, é qual, entre os três VOLP, virá a ser considerado oficial e quem tomará a decisão, dado que a língua envolve os ministérios da Cultura, Negócios Estrangeiros e Educação. «Falta definir quem manda na língua.»
Público, 30 de Dezembro de 2009