Artigo crítico de Maria Regina Rocha, publicado no Diário do Alentejo de 3 de Abril de 2009.
Como consequência do recente Acordo Ortográfico, a Academia Brasileira de Letras acaba de lançar o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que contém cerca de 350 mil vocábulos. Lembremos que no Brasil o acordo entrou em vigor no dia 1 de Janeiro deste ano [de 2009], não tendo o mesmo acontecido em Portugal. O nosso ministro da Cultura tem referido estar confiante de que a entrada em vigor do Acordo Ortográfico nas instituições oficiais se verificará até ao final do primeiro semestre deste ano, mas certezas, nas as há.
E, quanto ao vocabulário, em Portugal nada se fez de semelhante. Como previam os detractores do Acordo Ortográfico, é o Brasil a tomar a dianteira, registando já as suas variantes num vocabulário que pode servir de referente a todos os países da lusofonia, visto Portugal não ter avançado com uma obra idêntica.
Como se sabe, o grande fundamento deste Acordo é a simplificação. Evanildo Bechara, académico brasileiro, coordenador da equipa que elaborou o referido vocabulário, sublinha que «o novo sistema ortográfico veio realmente para simplificar e não para complicar a vida dos que escrevem, dos utentes da língua portuguesa».
Esta frase leva-me a reflectir sobre o que significa «complicar a vida dos que escrevem», parecendo legítimo inferir-se daqui que a "complicação" maior seria a da utilização das tais consoantes não articuladas: se não se articulam, não se escrevem, para não «complicar a vida dos que escrevem».
O conhecimento surge, assim, como sinónimo de "complicação". É que essas tais consoantes não articuladas, varridas da grafia portuguesa por cedência à oralidade ou à "simplicidade", são (eram?) elementos fundamentais das raízes das palavras, dos radicais, ou seja, dos segmentos das palavras portadores do seu significado primitivo e profundo.
Exemplifiquemos, para que se compreenda melhor.
Reparemos nas palavras acção, acto, actor, actividade, activo, actuar: retirar o c destas palavras significa eliminar uma parte do seu radical, presente em todas as palavras da mesma família. Trata-se da raiz antiga ag-, do verbo latino agere, cujo particípio é actus, que significa, originariamente, «pôr em movimento», «fazer (de modo contínuo)». O significado de fazer, de agir, presente nesta raiz, que pode ter a forma ag- ou ac-, é visível nas palavras acima referidas e, ainda, em outras tão diversas como reacção e reagir; acta, activista, actuação, actual; agenda, agente, ágil, agitador, agitar. Exemplifiquemos algumas. Quem faz muitas coisas é uma pessoa activa; quem se move (age) com destreza é ágil. Quem faz algo é um agente. Quando é preciso registar o que há para fazer, usa-se uma agenda. E o conjunto das acções, do que foi feito, é, em latim, a acta, que também designa o documento de registo dessas acções. Quem age denodadamente por uma causa é um activista, por vezes um agitador, da família de agitar, que designa o acto de fazer algo repetidamente.
Também com o significado de fazer, temos a raiz fac-, do verbo latino facere (perfeito: feci; particípio: factus). Fac- e fec- são duas formas da mesma raiz, presentes, por exemplo, nas palavras facção, facto, factual, factor, factura, fácil; efectivo, confeccionar e perfeccionista. Facção, que em latim significa «maneira de fazer», é a parte divergente de um grupo, que age de uma determinada maneira. O facto é a acção feita, realizada; o factor é o agente, o que faz com que algo aconteça. A palavra factura designa a obra feita; daí o documento que descreve o que foi feito e deve ser pago. E fácil é o que se faz sem custo. Efectivo, que em latim significa «activo, que produz», é aquele que realmente faz algo e, por isso, permanece. Confeccionar é fazer, e perfeccionista é o que procura realizar na perfeição uma obra ou tarefa. Todas estas palavras têm o mesmo radical. Em Portugal, o c só é articulado nas palavras facto e factual (e, por vezes, em perfeccionista). No Brasil, não é articulado em facto (que aí se escreve fato), mas é-o em factual, facção, confecção, confeccionar, perfeccionista, o que faz com que neste país estas palavras se escrevam com o referido c. E, no Brasil, assiste-se, portanto, a isto: escreve-se fato (sem c) mas facção e factual (com c).
E agora, com o acordo, para "simplificar" a ortografia, em Portugal passar-se-á a escrever como se lê, ou seja, umas palavras terão o radical perfeito, outras não, à semelhança do que já se passava no Brasil.
Ora, são todas palavras da mesma família, pois têm a mesma raiz. Suprimir-lhe uma parte do radical significa anular a possibilidade da sua compreensão pela análise da própria morfologia da palavra.
Assim, a existência de tais consoantes talvez possa ser compreendida por alguns como uma "complicação" na escrita das palavras, mas essa existência contribui para um melhor conhecimento do seu significado, ou seja, para a construção de um leitor competente, que interpreta, deduz, infere, relaciona, compreende, enfim.
Em suma, para se "simplificar" a ortografia, atentou-se contra a etimologia e "complicou-se" a compreensão...
Diário do Alentejo de 3 de Abril de 2009