Que estudos linguísticos sustentam o Acordo Ortográfico? É esta a pergunta-argumento de Francisco Miguel Valada em resposta a José Mário Costa.
São diversos os argumentos a favor do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), mas todos partilham uma característica comum: são rebatíveis, quer no plano retórico, quando de retórica se alimentam, quer no plano factual, quando de factos alheios à realidade se servem. No plano técnico, continuamos todos à espera, uns impávidos, alguns serenos e outros nem uma coisa nem outra, que se rebata o irrebatível e se proponha o princípio revolucionário, com bases de sustentação, aniquilador de toda a doutrina em matéria ortográfica e de todos os pareceres fundamentados, escalpelizadores deste AO 90. Escalpelizadores e reprovadores, sublinhe-se. Sentados, continuaremos todos à espera.
Nem a Einstein foi dado o impróprio privilégio de ver teorias não provadas serem gratuitamente abraçadas e directamente vertidas em texto legislativo. Já agora, nem ao LNEC. Einstein, para provar que Newton estava errado, teve de aguardar por um eclipse solar. O LNEC, para ver conclusões suas transformadas em lei (refiro-me ao relatório sobre o novo aeroporto de Lisboa), teve de levar a cabo estudos. Quanto aos autores do AO 90, não precisam estes da teoria sancionada nem de estudos, servindo-se do eclipse científico. Felizmente, para todos nós, a Física vale-se exclusivamente de factos comprováveis e a quem avalia aeroportos e pontes não basta tecer uma avaliação subjectiva, devendo apresentar argumentação tecnicamente válida. A Linguística também tem factos comprováveis e comprovados para apresentar, mas já todos percebemos que há ciências mais iguais do que outras.
Um argumento factual, que eu julgara definitivamente afastado da argumentação pró-AO 90, porque medularmente falso, adrede ligeiro e notoriamente avulso, é o da ortografia «excludente». Já alhures tive oportunidade de rebater este argumento, perante o Sr. Embaixador Lauro Moreira. Devo repetir-me, aqui e agora, perante a incrível frase de José Mário Costa «Há toda a diferença entre uma língua, a nossa, com duas ortografias oficiais (repito: ortografias oficiais), antagónicas e excludentes entre si, e o inglês» (Público, 12/01/2010).
O princípio «excludente» carece de explicação e passo a explicá-lo. «Excludente», na argumentação pró-AO 90, significa que uma criança brasileira reprovará numa escola portuguesa se utilizar a norma ortográfica do Português do Brasil e que uma criança portuguesa reprovará numa escola brasileira se utilizar a norma ortográfica do Português europeu. Pretendem os defensores do AO 90 que este quadro se alterará com a aplicação do AO 90. Nada de mais falso.
Se uma criança portuguesa escrevesse numa redacção a improvável frase: «Após o doutoramento do meu pai, comecei a sentir-me afectado», não creio que, numa escola brasileira, se concentrassem tanto no c de «afectado», mas antes se preocupassem com o «doutoramento» que deveria ser «doutorado», com o «do meu pai» que se imporia ser «de meu pai» e com o «a sentir-me» no lugar de «me sentindo», ou seja: «Após o doutorado de meu pai, comecei me sentindo afetado». Poderíamos então, à ortografia «excludente», acrescentar a morfossintaxe e o léxico «excludentes». Mas não nos centremos na subjacente ideia de "unificação da língua portuguesa", pois de ortografia aqui se trata.
Vamos aos factos. Segundo José Mário Costa, a ortografia «excludente» não se aplica ao Inglês. Limito-me, como matéria de séria reflexão, a deixar duas notas sobre a redacção em Inglês, a nível académico: uma da Universidade de Oxford (Reino Unido) e outra da Universidade de Stanford (EUA), para que as coisas surjam como são e não como se pensa que poderiam ser.
A primeira distingue um «não» em maiúsculas ("NOT") relativamente ao putativo uso da grafia consuetudinária do Inglês dos EUA («Use British English rather than American English, e.g.: towards; amid; while; NOT toward; amidst; whilst») (1) e a segunda, em caso de dúvida, aconselha um dicionário americano e não um britânico («Please use American spelling. If unsure, please consult Webster´s Tenth New Collegiate Dictionary and use the first entry of spelling») (2). Posso voltar a este argumento, mas penso que ficámos esclarecidos.
Acresce ainda não poder esta matéria ser «arrumada na prateleira da história» (José Mário Costa, Público, 12/01/2010), considerando a relevância dos argumentos por mim e por outros apresentados. Arrumam-se argumentos, após dissecados e determinada a sua improcedência. Quando não, a sua relevância mantém-se. Pelo contrário, faltam aos argumentos do AO 90 estudos que os sustentem, tornando-os numa espécie de ornitorrinco, um enigma na classificação, um desafio semiótico. As conclusões do AO 90 foram traçadas, quer numa bissectriz contrária à doutrina, quer numa trissectriz que ignora a realidade. A propósito, «bissectriz», segundo o AO 90, passa a «bissetriz», mantendo-se, contudo, «trissectriz». Porquê? Perguntai aos autores do AO 90, que assim decidem em Vocabulário, ou olhai os lírios do campo e obtereis a mesma resposta.
O AO 90 limita-se a ignorar toda a doutrina, pretendendo-se parecer, mas sem método visível para sequer o parecer. Ao contrário do ornitorrinco, que tem acção benigna no meio que o envolve, o AO 90 apenas se distingue por ser diferente.
1) http://www.ox.ac.uk/branding_toolkit/writing_and_style_guide/spelling.html
In jornal Público de 18 de Janeiro de 2010.