O texto do Acordo não é regulador, não uniformiza e vai introduzir muitas confusões na sua aplicação. Francisco Miguel Valada reitera os pontos da argumentação anti-Acordo, em resposta a um artigo de José Mário Costa.
O debate em redor do Acordo Ortográfico voltou à estaca zero, com o artigo de José Mário Costa, no Público de 4/1/2009. No artigo, intitulado «Alguns pontos nos ii sobre o Acordo Ortográfico», nem se vislumbra qualquer referência aos vícios do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), assinalados em pareceres técnicos e em comentários razoados, nem se manifestam as razões linguísticas que demonstram a inaptidão do AO 90 para um sistema de escrita de base alfabética, nem se atalha o facto de o AO 90 ter passado incólume ao crivo especializado e a estudos e avaliações, ao contrário do que sucede com qualquer projecto com incidência no quotidiano.
José Mário Costa apresenta a questão da dupla grafia, ignorando a questão central. Em nenhuma ortografia sucede a facultatividade irrestrita prescrita pelo AO 90. A dupla grafia que José Mário Costa apresenta para o inglês não se aplica às letra e forma do AO 90. Os dicionários ingleses (por exemplo, o New Oxford Dictionary of English de 1998) sublinham, para theatre, plough ou sceptic, as grafias theater, plow e skeptic, com a menção explícita "US". Em alemão, em contextos específicos, que não vou explanar, para não maçar aqui os leitores, o uso do Eszett (ß) não se aplica à Suíça, sendo esse facto explicitamente mencionado no texto do Acordo de 1996, determinando-se que na Suíça se pode escrever sempre "ss".
Pelo contrário, se José Mário Costa conferir o VOLP da Porto Editora, verá que carácter se grafa caráter e/ou carácter, constituindo duas grafias para o mesmo significante na mesma norma culta, ao contrário de grafias "duplas" que Malaca Casteleiro apresenta, à laia de justificação, no Preâmbulo do VOLP da Porto Editora, como arena e areia. Qualquer leigo sabe que areia e arena não são a mesma palavra, pois numa arena há areia e areia pode haver noutros locais que não numa arena. O VOLP da Porto Editora, da responsabilidade de Malaca Casteleiro (igualmente co-autor e negociador do AO 90), pretende aplicar-se exclusivamente à norma do português europeu. O desastre que se segue à aplicação do AO 90 é evidente.
Se acrescentarmos o facto de no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001), organizado por Malaca Casteleiro, o segundo c de carácter se pronunciar, não havendo excepção a esta regra, o desastre é total. Se recordarmos que se prepara a coexistência de três Vocabulários para a norma do português europeu com o VOLP da Academia Brasileira de Letras, o desastre seria risível, não fosse real.
Erro crasso, porque prenhe de subjectividade, é o comentário de José Mário Costa: "Quem está contra o Acordo Ortográfico, este ou qualquer outro, estará até ao fim dos seus dias". Eu, autor de livro contra o AO 90, sou favorável a uma reforma ortográfica (sob forma de acordo ou sob outra forma), desde que se respeitem os princípios de uma ortografia de base alfabética e que se não limite a sua base teórica a um "critério de pronúncia" vago, errado e ambíguo.
Sou favorável ao Acordo Ortográfico de 1945, com críticas a opções de pormenor, mas não aos seus princípios gerais. Não sou favorável a um Acordo publicitado como "uma das medidas mais urgentes para a unificação da língua portuguesa", como afirmou Solange Parvaux, em 2004, na Fundação Calouste Gulbenkian , esquecendo que as divergências morfossintácticas e lexicais impedem tal projecto, no mínimo, megalómano. Sou favorável a uma reforma ortográfica que dignifique a minha língua e não a qualquer documento nem a qualquer processo que se baseie exclusivamente em relações de poder, em questões que envolvam "locomotivas" e "inevitabilidade", quando as razões da ortografia são linguísticas, devendo estas ser escutadas e analisadas por quem de direito e não ofuscadas por luzes que do rigor há muito se afastaram.
Adenda: Preparava-me para enviar este artigo, quando me deparei com a "Heterodoxia ortográfica" do professor Vital Moreira (PÚBLICO, 5/1/2010). Permito-me sublinhar cinco pomos de discórdia:
1 - A "confusão duradoura em matéria ortográfica" aplica-se, não à louvável iniciativa da Direcção do Público, mas a este AO 90, como acabei de demonstrar ;
2 - As "intensas discussões académicas e políticas" aplicam-se, não ao AO 90, mas ao seu antecessor, o AO 86. Se a existência de uma discussão legitima decisões contrárias ao resultado dessa discussão, deveremos todos rever o conceito "discussão";
3 - Quanto à "convergência ortográfica" e à "uniformidade fonética", recordem-se dois pontos cruciais: a) Este AO 90 promove grafias diferentes na mesma norma culta, à custa de um "critério de pronúncia", arbitrário por natureza; b) Este AO 90 promove a incoerência gráfica entre formas afins, a opacidade crescente e a ambiguidade semântica;
4 - A questão essencial continua a escapar a muitos espíritos, mesmo aos reconhecidos pela sua argúcia: o AO 90 é um mau instrumento linguístico, com consequências negativas para o futuro;
5 - Uma última nota, relativamente ao "conservadorismo ortográfico". Em qualquer Ciência, o conservadorismo deve pautar-se pela presença em termos de método, para que o objecto definido (em Linguística, por natureza, mutável) possa ser descrito com exactidão e sobre ele se possa prescrever com rigor. Não pode é a disciplina potenciar mudanças no objecto, através da perversão do método. Quando coacção se tornar homófona de coação ou sempre que se duvidar se para é verbo ou preposição, os nocivos efeitos deste AO 90 começarão a reflectir-se no quotidiano.
A tomada de posição por parte da Direcção do PÚBLICO é notável, pois mantém a aplicação de um instrumento ortográfico que respeita os princípios de uma escrita de base alfabética, não cedendo a outro (o AO 90), que tem muito de pseudofonético e pouco de ortográfico.