« (...) O debate foi sempre marcado pela questão das cedências: seria Portugal que estava a fazer cedências ao Brasil ou vice-versa? (...)»
O Acordo Ortográfico que entrou em vigor em Portugal (embora ainda não esteja a ser oficialmente aplicado) e que está em vigor no Brasil desde o início de 2009 é, por estranho que pareça, conhecido como Acordo Ortográfico de 1990. É uma saga com 20 anos.
Mas para perceber como se chegou aqui é necessário recuar até ao início do século XX. Ou, já agora, um pouco mais, até ao século XVI.
Quando se começou a escrever a língua portuguesa, a tendência foi para que as palavras representassem foneticamente os sons. Mas na segunda metade do século XVI, numa altura em que o português sentia a necessidade de se afirmar perante o castelhano, tentou-se legitimar a língua dando-lhe um cariz mais latino e optando por uma ortografia mais etimológica (a partir da origem das palavras). Foi nessa altura que, lembram Manuel Tavares e Maria Manuel C. Ricardo na Revista Lusófona de Educação, João Franco Barreto publicou a Ortografia da Língua Portugueza. Era o tempo é que "é" se escrevia "he", "plurais" eram "pluraes", "podem" tinha acento no "o", e "bom" era "bõ".
Durante os séculos seguintes permaneceu a polémica entre ortografia etimológica e fonética. E foi assim que se chegou a 1911. A República fora implantada no ano anterior e António Dias Coelho, chefe do serviço de revisão da Imprensa Nacional, denuncia o "estado de incoerência ortográfica". Decide-se fazer uma Reforma Ortográfica. Foi, escrevem os autores do texto, uma reforma profunda e que "modificou completamente o aspecto da língua escrita, aproximando-o muito do actual". Desapareceram as consoantes dobradas (belleza), os "ph" (pharmacia), "th" e "rh". Fez-se um "retorno parcial à ortografia fonética da Idade Média". Houve protestos em Portugal, mas foi no Brasil que houve uma rejeição total de uma reforma que tinha sido feita sem o país com maior número de falantes de português. Tinham começado os problemas que um século mais tarde ainda estamos a tentar resolver.
Mas a reforma de 1911 manteve muitas consoantes mudas e fórmulas que os críticos vêem como cedências à etimologia. E levou ao afastamento entre as ortografias de Portugal e do Brasil, que manteve a antiga. Houve uma tentativa de acordo em 1931, por iniciativa da Academia Brasileira de Letras, mas falhou.
Em 1943 é estabelecido entre os dois países um Formulário Ortográfico e dois anos depois Portugal adopta um novo Acordo Ortográfico. Apesar de ter a assinatura da Academia Brasileira de Letras, o acordo nunca foi aplicado no Brasil. Entrou em vigor em Portugal e nos restantes países de língua oficial portuguesa e cavou o divórcio ortográfico entre os dois lados do Atlântico. É esse acordo que o actual substitui.
O debate foi sempre marcado pela questão das cedências: seria Portugal que estava a fazer cedências ao Brasil ou vice-versa? Alguns artigos que saíram recentemente na imprensa estrangeira sobre o acordo fazem uma leitura simples. "O império contra-ataca", descreve a Associated Press; e Eric Hewett, um linguista baseado em Roma citado pelo Times online, considera "extraordinário que uma potência colonial europeia mude a sua ortografia para se aproximar da de uma colónia". Mas, conclui o mesmo artigo, foram a globalização e a Internet que tornaram a decisão "incontornável": "A natureza da Internet e a importância de motores de busca como o Google significam que a grafia é crucial: a lei das percentagens diz-nos que menos pessoas irão encontrar a Optimo Global Shipping Co em Lisboa do que a Otimo Global Shipping Co em São Paulo".
N.E. – Desde cedo, os jornais da época noticiaram e comentaram esta primeira iniciativa de normalização e simplificação da escrita da língua portuguesa. Por aí pode acompanhar-se a preparação de impressores e tipógrafos para receber a reforma em vigor desde 1911; por aí perpassa o terçar de armas a favor de e contra, que chegou a ser impugnado por petição coletiva; e por aí se percebe que a liça em torno do mais recente Acordo Ortográfico de 1990 é o regressar de uma velha questão do princípio do século XX, em que entraram nomes como José Correia Nobre de França, Alexandre Fontes, Henrique Brunswick e os dos filólogos Aniceto dos Reis Gonçalves Viana e Cândido de Figueiredo, que assinaram cartas em Diário de Notícias e n' O Seculo. Intitulada “A Questão Ortográfica", Gonçalves Viana, relator da Comissão Oficial da reforma ortográfica de 1911, dirigiu uma a carta Rodolf Horner e uma outra a Cândido de Figueiredo (“A reforma ortográfica").
Cf. Aplicar a nova ortografia em 2010 é uma precipitação? + Motivação no Brasil: imprensa já aplica desde Janeiro de 2008
artigo transcrito do jorna Público,de 30 de dezembro de 2009, escrito segundo a norma ortográfica de 1945.